domingo, julho 20, 2003
elogio da sombra #2
«Ontem, soprava um vento conhecido. Um vento que eu já havia encontrado», assim começa Ontem de Agota Kristof. Já tinha lido na badana do livro que Kristof era uma mulher mas esqueci isso por completo durante o tempo curto que durou a leitura. Intensa leitura que por qualquer razão arbitrária acabou por ser acompanhada pela música de Satie que acompanha o site de Klimt sugerido no post anterior. E, sem saber como nem porquê, aquele pequeno e repetitivo trecho foi a banda sonora ideal para a escrita curta, tensa, poética de Kristof. Ou antes para a escrita de Tobias Horvath. Ou antes de Sandor Lester. Como tudo se entrecruza em determinados instantes. A indestrutível importância do tempo sobre nós. O que somos, o que quisemos ser, o que ainda seremos. Até onde esticará a corda dos nossos sonhos? Dos meus poemas? Do silêncio? Qual o limite para onde tudo converge para que se dê a ruptura, as rupturas? Ouvir um piano que não entra num livro e sentir que ele está lá dentro e sentir que estamos lá dentro. Qual o limite para que se quebre o lugar «onde as pessoas são felizes porque não conhecem o amor»?
«Os músicos reuniram-se sobre a montanha. O maestro dobrou contra si as suas asas negras e os outros começaram a tocar.
O navio deles navegava sobre as vagas da música, as cordas flutuavam ao vento.
Os dedos encurvados do maior afundaram-se na madeira. Os outros quatro retiraram a sua roupa, as suas costelas estendiam-se, os seus joelhos flectiam, sobre as suas artérias dançavam aranhas negras.
No vale o sol ainda retinia, de casas simples e cinzentas brotava a erva do prado quando o músico mais forte que, sonhador, se passeava pelo trigo, se ajoelhou sobre a colina. E cantava ao fundo do navio aquele que foi o mais feliz de todos.
Os outros não viram as escoras do sol impotente. Um quadro encheu-se das cores do céu. Nos olhos iluminaram-se estrelas futuras.
Então, os homens do navio puseram os seus mortos aos ombros deitando um último olhar na direcção da terra.» Podia ter terminado assim o livro que eu não me importava nada.
«Ontem, soprava um vento conhecido. Um vento que eu já havia encontrado», assim começa Ontem de Agota Kristof. Já tinha lido na badana do livro que Kristof era uma mulher mas esqueci isso por completo durante o tempo curto que durou a leitura. Intensa leitura que por qualquer razão arbitrária acabou por ser acompanhada pela música de Satie que acompanha o site de Klimt sugerido no post anterior. E, sem saber como nem porquê, aquele pequeno e repetitivo trecho foi a banda sonora ideal para a escrita curta, tensa, poética de Kristof. Ou antes para a escrita de Tobias Horvath. Ou antes de Sandor Lester. Como tudo se entrecruza em determinados instantes. A indestrutível importância do tempo sobre nós. O que somos, o que quisemos ser, o que ainda seremos. Até onde esticará a corda dos nossos sonhos? Dos meus poemas? Do silêncio? Qual o limite para onde tudo converge para que se dê a ruptura, as rupturas? Ouvir um piano que não entra num livro e sentir que ele está lá dentro e sentir que estamos lá dentro. Qual o limite para que se quebre o lugar «onde as pessoas são felizes porque não conhecem o amor»?
«Os músicos reuniram-se sobre a montanha. O maestro dobrou contra si as suas asas negras e os outros começaram a tocar.
O navio deles navegava sobre as vagas da música, as cordas flutuavam ao vento.
Os dedos encurvados do maior afundaram-se na madeira. Os outros quatro retiraram a sua roupa, as suas costelas estendiam-se, os seus joelhos flectiam, sobre as suas artérias dançavam aranhas negras.
No vale o sol ainda retinia, de casas simples e cinzentas brotava a erva do prado quando o músico mais forte que, sonhador, se passeava pelo trigo, se ajoelhou sobre a colina. E cantava ao fundo do navio aquele que foi o mais feliz de todos.
Os outros não viram as escoras do sol impotente. Um quadro encheu-se das cores do céu. Nos olhos iluminaram-se estrelas futuras.
Então, os homens do navio puseram os seus mortos aos ombros deitando um último olhar na direcção da terra.» Podia ter terminado assim o livro que eu não me importava nada.