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segunda-feira, setembro 29, 2003

longe de mim mesma ou a fingir que sim #1*

POEMA OITO, de Paulinho Assunção

1. Torto por linhas tortas foi o modo que encontrei para exercer em mim as palavras em condição de viventes

2. Em épocas de primeiros êxtases, costumava rastrear delas as pegadas, os rastros, as manchas, como se fossem gentes em êxodo

3. Sonhei recados de umas para as outras nas vísceras do não-dito nem escrito

4. Sonhei bilhetes no carvão, no fogo e nas cinzas, naquilo que restou das algaravias

5. Imaginei tratados filosóficos em ossos e fósseis de vocábulos

6. Vi pedaços do que eu fantasiava um dia escrever nas sementes deixadas na tumba dos faraós

7. E veio o dia em que olhei o mundo e o mundo era feito de letras e alfabetos

8. Foi então que fantasiei uma caixa de escrever, uma caixa de escrever com gavetas lacradas que descobri não terem chaves nem manual de instruções para abri-las

9. Torto por linhas tortas descobri que investigar palavras é diferente do ofício do anatomista que cinde um cadáver

10. Torto por linhas tortas soube que o matiz nelas existente é diferente do que há de matiz por exemplo no ventre de uma pedra

11. O que nelas há de peso e volume é diferente do peso e do volume que se apreende da mensuração de um tijolo

12. Nem adianta jogá-las em um poço a fim de que produzam os sons ou os ecos de uma moeda

13. Nem adianta querer delas o ritmo que vem da baqueta sobre o tarol ou sobre o bumbo, esses ritmos de fanfarra

14. Torto por linhas tortas descobri o quanto de falácia há no ato de encerrar palavras dentro de uma garrafa

15. Torto por linhas tortas restringi meus êxtases a um sol todo estilhaços vazado por uma janela e pintor de ideogramas nas paredes

16. Torto por linhas tortas fui até Rimbaud, mas tive de levar pincel e tinta a fim de dar cor à cor que ele disse ter visto em suas vogais

17. Tocar as palavras do modo como se toca uma coisa foi o maior dos meus enganos

18. Torto por linhas tortas vi que nem a palavra coisa pode ser tocada à maneira dos corpos

19. A pedra e a mão, sim, formam uma parelha em estado de núpcias e se tocam à maneira de amantes

20. Também parelhas núbeis são a mão e o graveto, a mão e o estilete, a mão e o cinzel, a mão e a goiva, a mão e o cálamo, a mão e a pena de pato, a mão e o pincel, a mão e o lápis

21. Falácia é dizer que a tinta contém fetos de letras e de palavras, pois a tinta é um mero aquém à espera, quando muito um dos murmúrios da cópula futura

22. Palavras podem ser depositadas sobre paredes mas nem por isso terão a consistência dos ovos de uma vespa

23. Palavras podem ser riscadas na areia mas nem por isso o boi vem lambê-las ou o lagarto engoli-las

24. Palavras no granito dissolvem-se na coisa-lápide ou na coisa-estátua, nada mais

25. Falácia é flagrar milagres de palavras em tecido, couro, pergaminho ou papel nos quais estejam incrustadas

26. Falácia é dividir as palavras entre vazias e cheias, entre substantivas e adjetivas

27. Falácia é dividi-las entre escuras e iluminadas

28. Torto por linhas tortas vim a descobrir as similitudes de umas com todas, de todas com nenhuma

29. Torto por linhas tortas descobri ser falácia palavras com chips ou circuitos de néon em suas entranhas

30. Não há estado de coisa nas palavras em escrita cuneiforme, há, sim, estado de coisa na substância barrenta dos tijolinhos de escrever

31. Coisa é o papel, coisa é o caderno, coisa é o livro, coisa é a tela do computador

32. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras não são da ordem da matéria, mas da ordem das povoações

33. E talvez quem saiba delas sejam os santos desmobilizados e sem igreja, os santos expulsos da ordem das santidades

34. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras são também da ordem das miragens

35. Reduzi assim meus êxtases à contemplação da mímica de luz e sombra que há no território das palavras

36. Por exemplo, a mímica da doçura, quando é de favo que elas se mimetizam

37. Por exemplo, a mímica do calor, quando é com fogo que elas nos ilusionam

38. Sob luz de vela, dentro de um claustro, um monge escreve a sua própria hipnose

39. No escritório, com a escrivaninha frente à janela, ou na praça, com o caderno sobre os joelhos, um ilusionista erige no ar palavras em dissipações

40. Num café de Paris, o escrevente sonâmbulo constrói hieróglifos mais leves do que o ar

41. Foi torto, por linhas tortas, que outras águas eu percebi na corrente que subjaz o rio das palavras

42. Coisa é o som que faz um homem na máquina de escrever, coisa é a cadeira anatômica diante do computador

43. Coisa é a cidade de Alexandria, coisa é a biblioteca de Ptolomeu

44. Num mosteiro do fim do mundo, o primeiro e o último livro se enlaçarão com seus braços ou tentáculos de alfa e ômega

45. Todos os dias um falso Gutenberg sonha palavras de gesso encarceradas na página de um livro

46. Torto por linhas tortas descobri ser o Diabo um deslegente tanto quanto Deus é o seu deslido

47. Só torto por linhas tortas pude acompanhar o fio de Ariadne por entre as estantes da biblioteca de Borges

48. Falácia é dividir as palavras entre as ardentes e as frias

49. Torto por linhas tortas descobri que as palavras são da ordem dos fios que ligam um lado e outro do abismo

50. Meu êxtase é ter hoje com elas o convívio das gentes serenadas, das gentes desafligidas de bando

(Texto integral do livro "Outras Águas", "Edições 2 Luas", 2000, Belo Horizonte. Os livros da Edições 2 Luas são produzidos artesanalmente por Paulinho Assunção desde 1998)

Muito mais aqui, aqui e aqui.

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