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segunda-feira, outubro 06, 2003

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Fernando Seborro, rede (véu do mundo)
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sentava-se ali todas as tardes. era como se sentasse ali todas as tardes. ano após ano. foram pouquíssimos os motivos que, uma ou outra vez, prevaleceram ao entardecer ali. as dores de cabeça que subiam ainda o insuportável meio tom e o levavam directo para o quarto assim que chegava a casa, onde permanecia até ao dia seguinte, sem jantar, sem a telenovela (ou mesmo a bola que fosse), sem o leite morno e sem forças contra nada, contra aquilo. o esquecer-se (umas cinco vezes, ao todo) do tempo entre minis e a manilha – a manilha é semelhante à sueca, na manilha o sete é a carta mais valiosa e não o ás. nem sempre se lembrava disto, já para não falar nos sinais; a carta a ser largada em cima da mesa, ou rodopiando até ao centro, ou numa pancada seca de dedos no contraplacado e a carta entre o indicador e o polegar. como podia ele saber que o parceiro estava a corte a espadas, ou suspeitar que tinha o às de copas seco, ou entender ao certo as razões que diziam imperdoável ter guardado aquele trunfo para a última vaza, como se lhe fosse possível adivinhar que só palha?... pior era esta sua disposição para a derrota, não se importava com ganhar ou perder, e isto sim, mais que tudo o resto, levava os outros jogadores aos arames, coisa que até entendia. entendia que jogar às cartas sem ser para ganhar era como deitar semente e não colher, ou mesmo como aquela vez que teve lábios de cereja abrindo-se contra os seus e os não transpôs com a língua. jogar às cartas por jogar era atirar à cara de todos os outros o conformismo de que eles fingiam escapar a cada cartada, sabia-o e entendia que só o chamassem para jogar em último caso (quando nem mesmo o velho reis estava disponível – o reis já quase não via nada, por causa das cataratas, entre paus e espadas tornava-se difícil distinguir e, o mais das vezes, acabava por trocá-los, enganava-se, não fora isso e seria um jogador de mão cheia, era inteligente, acompanhava o jogo e tinha estratégia, mais, como os outros, esforçava-se por ganhar) – acabando por chegar a casa já montado no sol. também aconteceu uma vez ser mandado parar pela guarda, foi o cargo dos trabalhos, a placa da matrícula tinha caído no dia anterior e, para desenrascar, prendeu-a na parte de trás do capacete. ele lá argumentava como podia, que aquilo era mais que prova da sua intenção de não infringir, mas a guarda não vai em cantigas. nesse dia, assim que entrou em casa, começou a descascar cebolas para a sopa de tomate, sem querer saber da tarde. um homem não é de ferro e há dias em que nenhuma beleza comove, sequer, demove do desperdício do exercício de exacerbação de si. mais valia descascar cebolas, se o espírito teimava em ocupar-se de motorizadas velhas e de tipos barrigudos a dar-lhes lições de cidadania.
assim, salvo as raríssimas excepções aqui enumeradas, sentava-se ali e entardecia-se. ocorria-lhe, de longe a longe, dar conta daquela rede, aquilo já não dizia muito bem dos seus preceitos. justificava-se consigo e dizia ser bom um filtro para o mundo, mas, melhor, um filtro rasgado para o mundo.


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