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segunda-feira, outubro 20, 2003

recuperado do baú para*
misturar com as tuas palavras:

Olhei em vão o pulso à procura de horas. E, depois, também a esquadria da janela segurando a noite. Há quanto tempo escurecera? Que penumbra era essa que desabara do céu tão silenciosamente, tão sem eu dar por nada? Girei na cadeira e fixei o telefone pousado na mesinha. Seria possível que alguma vez voltasse a trazer-me o som de uma voz quente e conhecida como essas que a chuva lembrava às vezes? A chuva. Um rumor antigo despenhando-se cegamente na pedra lisa dos parapeitos, rasgando sulcos na terra fecunda dos canteiros, abrindo pequenos golpes nos vidros - feridas que sarariam logo depois, na confusão umas das outras. Quem teria inventado o Inverno, os dias curtos que o amor não tinha tempo de visitar, os lençóis frios quando o corpo se virava na cama, desprevenido? Podia morrer-se a pensar nisso, a olhar os nós crescendo nos dedos como enfermidades sempre novas. Talvez a morte fosse isso mesmo, um imenso Inverno. Bastava que nos sentássemos quietos e deixássemos de comer, de andar, de falar, que fixássemos as mãos e ouvíssemos o ruído da chuva como um aviso.

Maria do Rosário Pedreira, Alguns homens, duas mulheres e eu, VNF, Quasi, 2002, pp 131-132

Da leitura deste livro ficou-me o mesmo encanto do encontro com a poesia desta autora, há um ano e tal. Sim, é a mesma d' O canto do vento nos ciprestes e teve o condão de me conseguir levar para dentro do livro, de ler a história como se a estivesse a viver e de me surpreender por diversas vezes com o rumo da narrativa [ainda agora não tenho bem a certeza como terminou o livro]. Acresce a isto uma escrita poética sempre presente, como um finíssimo tecido que se usa ou despe para o acto do amor.

Recomendo.

[escrito a 30.01.2003]

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