sábado, novembro 01, 2003
1 de Novembro*
de há dois ou três anos, já não sei. Tinhas-me oferecido A Revoada de Garcia Marquez e o livro começava com uma citação de Antígona, sobre os mortos. Tudo fazia sentido. Então, lá, de onde aparecem as coisas misteriosas, surgiu isto:
Tinha acabado de ler “A Revoada”...
Abri a porta. O sol apoderou-se de mim, de um só sopro, obrigando-me a fechar os olhos. Foram apenas breves instantes de cegueira. Logo as cores voltaram e o traçado do pátio, os contornos dos objectos, a textura sempre presente das sombras. A ramada permanecia igual, em perda, com o seu tom de Outono já a beijar o chão e os dois tanques transbordavam das chuvas do dia anterior.
Tinha acabado de ler “A Revoada”. Trazia o livro numa das mãos, encostado ao peito e sobre aquele braço, o outro apertado num abraço. Apesar do sol, estava frio. Era Novembro já. Não sei se aconchegava o livro ou se se aquecia a ela própria ou se as duas acções não eram afinal o mesmo acto... O certo é que sentia-se, assim, mais protegida. Não me perguntem já contra quê ou contra quem. Ainda não estou em condições de responder.
Dei um passo em direcção ao sol e olhei o céu à procura de nuvens. Não as havia. Ainda ontem o vento assemelhava-se a um lobo faminto e hoje o azul sorria para mim. «Logo hoje!...» - pensei. «Hoje é que devia chover! Hoje é que o vento devia urrar, gritar, blasfemar contra as portadas das casas e empurrar os homens!...» Mas não... O azul sorria e quase me fez descair e sorrir também.
Dirigiu-se ao jardim. Caminhava quase maquinalmente por entre o Outono. As folhas ainda molhadas, no chão. Um vento sóbrio. E o livro sempre apertado contra o peito, como se as folhas se fossem soltar se aquele abraço diminuísse de intensidade. Tinha acabado de ler “A Revoada” e precisou sair do quarto, sentir o sol, procurar o jardim. Mas com o livro bem apertado nos braços. Ainda ouvia os pregos na madeira.
«Tão poucas flores...» Só os crisântemos abundavam. Amarelos. Fortes. Vivos e túrgidos. «Raio de flor!». É certo que algumas dálias coloriam o jardim, como se a Primavera ainda estivesse um pouco perdida por ali. As dálias eram restos de ternura. Mas eram os crisântemos que reinavam. Amarelos. Fortes. Vivos e túrgidos. «Raio de flor!» - desta vez, acho que até falei em voz alta.
Passou ao lado dos crisântemos quase sem os ver, deu um relance de olhar às dálias como se fossem velhas companheiras e continuou até ao muro que circundava o jardim. Caminhava menos maquinalmente por entre o Outono daquele seu jardim. O livro deslizou um pouco nas mãos. Diria que ele se desprendera se não tivesse a certeza que foram as mãos dela que acalmaram o abraço. Era “A Revoada”. Talvez fosse impressão minha, mas os pregos soavam mais distantes e até os alcaravões, os pássaros de Macondo, pareciam ter parado de cantar.
No emaranhado das silvas, das folhas, dos espinhos, procurei-a com os olhos. Pressenti-a ontem, antes da chuva e dos urros do vento. Procurei para além do verde e das gotas de chuva ainda presas naquele emaranhado de silvas, folhas e espinhos. Sabia que a ia encontrar. Agachei-me e com a mão que não segurava o livro afastei algumas folhas, deixei que alguns espinhos me ferissem, que as gotas de chuva tocassem, de Outono, a minha pele, até que...Lá estava ela!...
Ter terminado “A Revoada” naquele dia deixara-a abalada. Não tinha provocado isso, nem se dera conta do sucedido até ter fechado o livro pela última vez, ao som dos alcaravões, sem que o enterro tivesse saído à rua. E ainda havia os pregos!... «Porquê hoje?!...» - pensara. E foi como se o dia renascesse nesse momento. «Logo hoje?!...» E recordou tudo.
Toquei-lhe. Com a ponta dos dedos, como se estivesse ainda a acariciar-te, como se estivesse ainda a saborear o teu corpo. Tinha um sabor a veludo. Vermelho! E acho que com o vermelho tingi os olhos também... Mas não chorei!... Sabes que não chorei!... Mesmo com os olhos tingidos de vermelho, tingidos de saudades, sorri! Logo hoje, sorri!... O livro quase me caiu da mão...
A morte sempre fora uma sombra na sua vida. Desde criança. Era um assunto mal resolvido, ainda que as sombras não se assemelhem a assuntos mal resolvidos. As sombras são quase objectos! São complementos de objectos!. Mas as suas sombras tinham um travo a irreal. Principalmente a sombra da morte. Até que ele tinha morrido...
“A Revoada” viera muito depois. Anos depois. Chegara com o seu cheiro a jasmim e lentamente também ela passara a fazer parte de Macondo. Do pó de Macondo, das heras e dos lagartos. Dos pregos. Dos alcaravões. Da intemporalidade daquelas três horas daquele enterro que acabaria por não sair à rua.
Sem saber, prolongara a leitura até àquele dia. Sem saber, desde que lera: «Lembra-te de que nunca te olhava nos olhos. É o segredo do homem que começou a sentir medo de se apaixonar.» Sem saber, os olhos dele voltaram em sonhos e falavam-lhe de ternura, falavam-lhe de pétalas de luar de que só o corpo dela conhecia o segredo. Falavam-lhe de um vermelho também, sem ela saber. Por detrás dos pregos, do cantar dos alcaravões e do cheiro do jasmim.
Abracei a rosa vermelha entre os dedos sem a tocar. Estava a florir. Levantei-me e olhei o sol novamente. Não havia nuvens. E o vento mal se fazia sentir. «O dia, hoje, tinha que ser azul!!» - pensei, com vontade de gritar. No dia da morte, o dia tinha que ser azul. Intenso. Era o que os teus olhos diziam aos meus quando abracei a rosa vermelha entre os dedos sem a tocar. Recordei as pétalas de luar e sorri. Senti-me viva, intensamente viva e quase desatei a correr quando a Teresa me chamou...
- Mãe!!..
«A Revoada» repousava em cima do muro.
de há dois ou três anos, já não sei. Tinhas-me oferecido A Revoada de Garcia Marquez e o livro começava com uma citação de Antígona, sobre os mortos. Tudo fazia sentido. Então, lá, de onde aparecem as coisas misteriosas, surgiu isto:
Tinha acabado de ler “A Revoada”...
Abri a porta. O sol apoderou-se de mim, de um só sopro, obrigando-me a fechar os olhos. Foram apenas breves instantes de cegueira. Logo as cores voltaram e o traçado do pátio, os contornos dos objectos, a textura sempre presente das sombras. A ramada permanecia igual, em perda, com o seu tom de Outono já a beijar o chão e os dois tanques transbordavam das chuvas do dia anterior.
Tinha acabado de ler “A Revoada”. Trazia o livro numa das mãos, encostado ao peito e sobre aquele braço, o outro apertado num abraço. Apesar do sol, estava frio. Era Novembro já. Não sei se aconchegava o livro ou se se aquecia a ela própria ou se as duas acções não eram afinal o mesmo acto... O certo é que sentia-se, assim, mais protegida. Não me perguntem já contra quê ou contra quem. Ainda não estou em condições de responder.
Dei um passo em direcção ao sol e olhei o céu à procura de nuvens. Não as havia. Ainda ontem o vento assemelhava-se a um lobo faminto e hoje o azul sorria para mim. «Logo hoje!...» - pensei. «Hoje é que devia chover! Hoje é que o vento devia urrar, gritar, blasfemar contra as portadas das casas e empurrar os homens!...» Mas não... O azul sorria e quase me fez descair e sorrir também.
Dirigiu-se ao jardim. Caminhava quase maquinalmente por entre o Outono. As folhas ainda molhadas, no chão. Um vento sóbrio. E o livro sempre apertado contra o peito, como se as folhas se fossem soltar se aquele abraço diminuísse de intensidade. Tinha acabado de ler “A Revoada” e precisou sair do quarto, sentir o sol, procurar o jardim. Mas com o livro bem apertado nos braços. Ainda ouvia os pregos na madeira.
«Tão poucas flores...» Só os crisântemos abundavam. Amarelos. Fortes. Vivos e túrgidos. «Raio de flor!». É certo que algumas dálias coloriam o jardim, como se a Primavera ainda estivesse um pouco perdida por ali. As dálias eram restos de ternura. Mas eram os crisântemos que reinavam. Amarelos. Fortes. Vivos e túrgidos. «Raio de flor!» - desta vez, acho que até falei em voz alta.
Passou ao lado dos crisântemos quase sem os ver, deu um relance de olhar às dálias como se fossem velhas companheiras e continuou até ao muro que circundava o jardim. Caminhava menos maquinalmente por entre o Outono daquele seu jardim. O livro deslizou um pouco nas mãos. Diria que ele se desprendera se não tivesse a certeza que foram as mãos dela que acalmaram o abraço. Era “A Revoada”. Talvez fosse impressão minha, mas os pregos soavam mais distantes e até os alcaravões, os pássaros de Macondo, pareciam ter parado de cantar.
No emaranhado das silvas, das folhas, dos espinhos, procurei-a com os olhos. Pressenti-a ontem, antes da chuva e dos urros do vento. Procurei para além do verde e das gotas de chuva ainda presas naquele emaranhado de silvas, folhas e espinhos. Sabia que a ia encontrar. Agachei-me e com a mão que não segurava o livro afastei algumas folhas, deixei que alguns espinhos me ferissem, que as gotas de chuva tocassem, de Outono, a minha pele, até que...Lá estava ela!...
Ter terminado “A Revoada” naquele dia deixara-a abalada. Não tinha provocado isso, nem se dera conta do sucedido até ter fechado o livro pela última vez, ao som dos alcaravões, sem que o enterro tivesse saído à rua. E ainda havia os pregos!... «Porquê hoje?!...» - pensara. E foi como se o dia renascesse nesse momento. «Logo hoje?!...» E recordou tudo.
Toquei-lhe. Com a ponta dos dedos, como se estivesse ainda a acariciar-te, como se estivesse ainda a saborear o teu corpo. Tinha um sabor a veludo. Vermelho! E acho que com o vermelho tingi os olhos também... Mas não chorei!... Sabes que não chorei!... Mesmo com os olhos tingidos de vermelho, tingidos de saudades, sorri! Logo hoje, sorri!... O livro quase me caiu da mão...
A morte sempre fora uma sombra na sua vida. Desde criança. Era um assunto mal resolvido, ainda que as sombras não se assemelhem a assuntos mal resolvidos. As sombras são quase objectos! São complementos de objectos!. Mas as suas sombras tinham um travo a irreal. Principalmente a sombra da morte. Até que ele tinha morrido...
“A Revoada” viera muito depois. Anos depois. Chegara com o seu cheiro a jasmim e lentamente também ela passara a fazer parte de Macondo. Do pó de Macondo, das heras e dos lagartos. Dos pregos. Dos alcaravões. Da intemporalidade daquelas três horas daquele enterro que acabaria por não sair à rua.
Sem saber, prolongara a leitura até àquele dia. Sem saber, desde que lera: «Lembra-te de que nunca te olhava nos olhos. É o segredo do homem que começou a sentir medo de se apaixonar.» Sem saber, os olhos dele voltaram em sonhos e falavam-lhe de ternura, falavam-lhe de pétalas de luar de que só o corpo dela conhecia o segredo. Falavam-lhe de um vermelho também, sem ela saber. Por detrás dos pregos, do cantar dos alcaravões e do cheiro do jasmim.
Abracei a rosa vermelha entre os dedos sem a tocar. Estava a florir. Levantei-me e olhei o sol novamente. Não havia nuvens. E o vento mal se fazia sentir. «O dia, hoje, tinha que ser azul!!» - pensei, com vontade de gritar. No dia da morte, o dia tinha que ser azul. Intenso. Era o que os teus olhos diziam aos meus quando abracei a rosa vermelha entre os dedos sem a tocar. Recordei as pétalas de luar e sorri. Senti-me viva, intensamente viva e quase desatei a correr quando a Teresa me chamou...
- Mãe!!..
«A Revoada» repousava em cima do muro.