terça-feira, novembro 18, 2003
há coisas assim #2*
Pinto as unhas de negro para perturbar o reflexo de olhares suspeitos.
Nas minhas mãos recua a morte dos pássaros diurnos que desafiam a débil perfeição das estrelas.
E lembro coisas sem nexo, a propósito de um vestido às ramagens verdes: cenas a que não posso fugir, porque perseguem o caos inconsistente das recordações.
É outono, o lugar onde os temores se confundem com a coragem, onde é permitido recordar amores perdidos.
Outono, o lugar onde contorno um horizonte, alternadamente azul e mel, e a liturgia dos gestos se repete, intacta e definitiva.
Aprendo a direcção dos ventos nos braços das mulheres com quem convivo.
Uma andorinha incandescente pulsa na página onde transcrevo um adágio contraditório, enquanto uma ideia, flexível como sombras, contorna o lado indecifrável da cara dos dias.
Fico à entrada da noite, cativa de hábitos estivais.
Procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado de um incêndio e descubro que todos os rios do mundo nascem por cima dos meus olhos.
Para além de alguns sons em uníssono na memória dos gestos, há múltiplas paisagens desabitadas no âmago dos homens.
Regresso ao ocaso de rostos abertos aos alarmes da melancolia. O espanto latente nas minhas veias, leva-me a qualquer lado onde posso ser uma pessoa igual às outras, sem o peso das sílabas sobre os meus ombros.
A similitude da água com o corpo, é tudo quanto sei da solidão: abismo fatal no interior do silêncio.
Sou habitante da cidade, como os pombos que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade, como todos os sobreviventes do cansaço ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se. Um som sufocado de baladas protege os culpados das ruínas do outono. Em vão me iludo com a claridade da cidade desperta. Ninguém chora a noite depois da passagem dos barcos pelo olhar das pessoas desprevenidas.
Reencontro-me com o estado primitivo do outono e deixo-me seduzir pelo paradoxal destino das gaivotas.
Dentro das minhas mãos, ávidas de ter, encalham navios vindos de todos os mares. Depois, exibo nos pulsos as marcas de naufrágios inexplicáveis, enquanto percorro um cenário vazio, no mutismo de árvores que se despem, lentamente, com o sopro magoado do poente.
Reconheço a minha voz nas palavras de todos os poetas e respiro o alarmante isolamento das multidões, à medida que descubro recantos obscuros na imaginação.
De costas voltadas para a fadiga dos dias, regresso à praia húmida onde nasço quantas vezes eu quero, livre do movimento das sombras que influenciam o percurso dos meus olhos.
No leme de todos os barcos leio o protesto quotidiano dos que nunca se rendem às imposições previstas em todas as pátrias, dos que não aceitam morrer sem saber porquê. E volto, de repente, à absoluta nudez das árvores despojadas de pássaros, onde o vento sopra tão rápido como um rastilho de fé.
Passam, assim, diante de mim contos de fadas, visões, ou apenas remorsos sem memória.
Graça Pires, Outono: lugar frágil
Pinto as unhas de negro para perturbar o reflexo de olhares suspeitos.
Nas minhas mãos recua a morte dos pássaros diurnos que desafiam a débil perfeição das estrelas.
E lembro coisas sem nexo, a propósito de um vestido às ramagens verdes: cenas a que não posso fugir, porque perseguem o caos inconsistente das recordações.
É outono, o lugar onde os temores se confundem com a coragem, onde é permitido recordar amores perdidos.
Outono, o lugar onde contorno um horizonte, alternadamente azul e mel, e a liturgia dos gestos se repete, intacta e definitiva.
Aprendo a direcção dos ventos nos braços das mulheres com quem convivo.
Uma andorinha incandescente pulsa na página onde transcrevo um adágio contraditório, enquanto uma ideia, flexível como sombras, contorna o lado indecifrável da cara dos dias.
Fico à entrada da noite, cativa de hábitos estivais.
Procuro uma fonte para recuperar o brilho aguado de um incêndio e descubro que todos os rios do mundo nascem por cima dos meus olhos.
Para além de alguns sons em uníssono na memória dos gestos, há múltiplas paisagens desabitadas no âmago dos homens.
Regresso ao ocaso de rostos abertos aos alarmes da melancolia. O espanto latente nas minhas veias, leva-me a qualquer lado onde posso ser uma pessoa igual às outras, sem o peso das sílabas sobre os meus ombros.
A similitude da água com o corpo, é tudo quanto sei da solidão: abismo fatal no interior do silêncio.
Sou habitante da cidade, como os pombos que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade, como todos os sobreviventes do cansaço ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se. Um som sufocado de baladas protege os culpados das ruínas do outono. Em vão me iludo com a claridade da cidade desperta. Ninguém chora a noite depois da passagem dos barcos pelo olhar das pessoas desprevenidas.
Reencontro-me com o estado primitivo do outono e deixo-me seduzir pelo paradoxal destino das gaivotas.
Dentro das minhas mãos, ávidas de ter, encalham navios vindos de todos os mares. Depois, exibo nos pulsos as marcas de naufrágios inexplicáveis, enquanto percorro um cenário vazio, no mutismo de árvores que se despem, lentamente, com o sopro magoado do poente.
Reconheço a minha voz nas palavras de todos os poetas e respiro o alarmante isolamento das multidões, à medida que descubro recantos obscuros na imaginação.
De costas voltadas para a fadiga dos dias, regresso à praia húmida onde nasço quantas vezes eu quero, livre do movimento das sombras que influenciam o percurso dos meus olhos.
No leme de todos os barcos leio o protesto quotidiano dos que nunca se rendem às imposições previstas em todas as pátrias, dos que não aceitam morrer sem saber porquê. E volto, de repente, à absoluta nudez das árvores despojadas de pássaros, onde o vento sopra tão rápido como um rastilho de fé.
Passam, assim, diante de mim contos de fadas, visões, ou apenas remorsos sem memória.
Graça Pires, Outono: lugar frágil