segunda-feira, dezembro 01, 2003
em cada árvore um nicho de sonhos*
Hoje, li várias evocações a um livro (novo) do poeta Sebastião Alba: no silêncio, no stand-up e no Ene Coisas. Como comentei no silêncio, senti vontade de reler este conto, na impossibilidade de ler já «albas»:
Naquele jardim do Éden, a cargo do município, o Outono enraízava-se nos dias, em tons de folhas caídas e de um vento ainda com mãos de Verão. Um silêncio rumorizado alimentava-se das sebes, das árvores e dos passos que teimavam em percorrer o parque. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.
- Velho Dinis, fala-me de sonhos. O que são os sonhos?... – a criança tinha olhos da cor da noite e olhava-o como quem procura o último segredo do Universo. Olhos esfomeados de respostas. Todos os dias o procurava, depois da escola. E encontrava-o sempre. Sob as árvores a tocar a sua gaita de beiços. No banco da paragem de autocarro junto ao Centro Comercial Santa Tecla injuriando os impacientes passageiros. Numa qualquer rua de Braga passeando a poesia sem palavras num rumor de desprendimento.
- Sonhos?!... – o velho cofiou a barba com as mãos sujas de histórias e quase lhe apeteceu destecer a vida. Mandou as memórias à merda e fitou o miúdo dos olhos cor de perguntas, que todos os dias tinha o condão de o encontrar.
– Sonhos.. – parecia ainda hesitar, como se as palavras tivessem ganho o peso dos oceanos e dos corais escondidos e dos risos perdidos das baleias. Sim, porque ele trazia as unhas encardidas de terra, mas eram restos do Índico que lhe brilhavam nos olhos.
- ... os sonhos são pedaços de maresia guardados no meu olhar de terra... – olhava o céu inexpressivamente – São as minhas mãos a modelar bonecos de nuvem quando o céu está mais azul, são os vossos sorrisos cor de arco-íris a rebolarem-se no verde da relva de um qualquer jardim...
- Podia falar-te dos sonhos das árvores ou dos rios, pequeno... São os sonhos mais bonitos... Um dia lembra-me para te contar a história de uma canoa, a que um homem deu o nome de Rosinha. Sabias que canoa é árvore?... - o miúdo abanou a cabeça. Nunca tinha pensado nisso. Claro que canoa é árvore! Como é que nunca adivinhara?... – E as árvores têm muitas histórias. Muitas histórias... – parou de falar, subitamente. Como sempre acontecia. Já lhe conhecia aquelas perdas de rumo e os voos entrecruzados das palavras, semi-selvagens, quase ervas-daninhas. Sim, quase!... porque as suas palavras nada tinham de maldade. Vagabundeava também enquanto falava, mas nunca se perdia...
- É! Os sonhos trazem-se à flor dos olhos, da pele, das mãos... – tão repentinamente como se calava, a voz iluminava-se de novo – Quando lanças um barco de papel ao rio e ficas a vê-lo desaparecer na distância, as tuas mãos ficam vazias, não é?... – o míudo concordava com a cabeça.
- Mentira, pequeno... Ficam cheias dos sonhos que o barquinho leva na correnteza... O sonho que ele chegue a um porto acolhedor. O sonho que ele encontre outros barquinhos e juntos esfolem os joelhos numa regata até ao mar. O sonho que um papagaio colorido de papel o veja, bem lá do infinito do céu e se enamore daquele pequeno herói que vai, água fora, bramindo velas contra o vento... – e os olhos do velho Dinis seguiam as indicações da sua própria mão até ao azul levando atrás de si os olhos do menino. Desta vez, sorria. E uma lágrima de criança seguiu o curso das rugas naquele rosto cansado e desembocou em sal na boca. Fez um trejeito de brusquidão com o corpo como se quisesse expulsar um arrepio e pegou novamente na gaita de beiços. A música tirar-lhe-ia aquele sabor a si mesmo, a mundo.
Tocou. Tocou. Tocou até que os olhos da criança quase se fechavam enlevados pela serenidade do instante.
- Tantos sonhos podem nascer a montante dos rios, pequeno... Tantos quantas histórias de «Era uma vez». Vais sempre com uma sacola carregada de livros para a Escola, não é?... – o miúdo anuiu, novamente. Sentia-se aconchegado naquele recanto do jardim, entre as frésias e os ciprestes, como se a sombra das árvores fossem os seus lençóis e aqueles breves momentos passados com o velho Dinis, as suas histórias de adormecer. – Mas olha, não há páginas que cheguem para guardar todos os «Era uma vez...» Não podem chegar. Os sonhos não cabem em folhas de papel. Estão ainda nos meus olhos! Como é possível?... Todos estes anos passados sem ouvir histórias de encantar, sem ouvir o vento ao leme da maresia, sem sentir o odor do impossível num raio de luar... E os sonhos estão ainda nos meus olhos!... – a voz sumiu-se mas os olhos brilhavam como nunca. E ao fundo, a íris entardece-se...
Voltara a sentir o silêncio rumorizado das sebes, das árvores e dos passos. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.
Chorava. Como uma criança, como um velho poeta vagabundo chorava e o sal desembocava-lhe na boca. Sentado, de costas apoiadas no velho carvalho, deixara a mochila abandonada sobre a terra e as folhas ressequidas de Outono e a cabeça poisara-a sobre os joelhos apertados entre os braços. Uma leve brisa sacudiu-lhe o corpo de menino que aprendia a viver, fazendo-o soerguer-se um pouco e recostar-se ao tronco do velho carvalho. Levou as mãos aos bolsos. Um papelinho. Um papelinho do velho Dinis!... Como conseguira ele?... Deveria ter sido ontem, enquanto conversávamos aqui mesmo. Sempre o mesmo. Lembrava-se de o ouvir conversar com homens assim velhos como ele e de lhes dizer: não, poemas, nunca mais!... Mas papelinhos semeava-os por todos aqueles que lhe eram significativos. E deixara-lhe um papelinho a si... Começou a chorar convulsivamente molhando o papelinho do poeta vagabundo.
Lembras-te do ninho de pássaros que encontramos uma vez entre os braços do nosso velho carvalho?... Em cada árvore há um nicho de sonhos...
O velho Dinis morreu ontem. Atropelado. O poeta vagabundo ao olhar morreu em surdina. Shut!...
Em memória de Sebastião Alba, poeta vagabundo.
As expressões em itálico são versos roubados ao poeta.
Hoje, li várias evocações a um livro (novo) do poeta Sebastião Alba: no silêncio, no stand-up e no Ene Coisas. Como comentei no silêncio, senti vontade de reler este conto, na impossibilidade de ler já «albas»:
Naquele jardim do Éden, a cargo do município, o Outono enraízava-se nos dias, em tons de folhas caídas e de um vento ainda com mãos de Verão. Um silêncio rumorizado alimentava-se das sebes, das árvores e dos passos que teimavam em percorrer o parque. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.
- Velho Dinis, fala-me de sonhos. O que são os sonhos?... – a criança tinha olhos da cor da noite e olhava-o como quem procura o último segredo do Universo. Olhos esfomeados de respostas. Todos os dias o procurava, depois da escola. E encontrava-o sempre. Sob as árvores a tocar a sua gaita de beiços. No banco da paragem de autocarro junto ao Centro Comercial Santa Tecla injuriando os impacientes passageiros. Numa qualquer rua de Braga passeando a poesia sem palavras num rumor de desprendimento.
- Sonhos?!... – o velho cofiou a barba com as mãos sujas de histórias e quase lhe apeteceu destecer a vida. Mandou as memórias à merda e fitou o miúdo dos olhos cor de perguntas, que todos os dias tinha o condão de o encontrar.
– Sonhos.. – parecia ainda hesitar, como se as palavras tivessem ganho o peso dos oceanos e dos corais escondidos e dos risos perdidos das baleias. Sim, porque ele trazia as unhas encardidas de terra, mas eram restos do Índico que lhe brilhavam nos olhos.
- ... os sonhos são pedaços de maresia guardados no meu olhar de terra... – olhava o céu inexpressivamente – São as minhas mãos a modelar bonecos de nuvem quando o céu está mais azul, são os vossos sorrisos cor de arco-íris a rebolarem-se no verde da relva de um qualquer jardim...
- Podia falar-te dos sonhos das árvores ou dos rios, pequeno... São os sonhos mais bonitos... Um dia lembra-me para te contar a história de uma canoa, a que um homem deu o nome de Rosinha. Sabias que canoa é árvore?... - o miúdo abanou a cabeça. Nunca tinha pensado nisso. Claro que canoa é árvore! Como é que nunca adivinhara?... – E as árvores têm muitas histórias. Muitas histórias... – parou de falar, subitamente. Como sempre acontecia. Já lhe conhecia aquelas perdas de rumo e os voos entrecruzados das palavras, semi-selvagens, quase ervas-daninhas. Sim, quase!... porque as suas palavras nada tinham de maldade. Vagabundeava também enquanto falava, mas nunca se perdia...
- É! Os sonhos trazem-se à flor dos olhos, da pele, das mãos... – tão repentinamente como se calava, a voz iluminava-se de novo – Quando lanças um barco de papel ao rio e ficas a vê-lo desaparecer na distância, as tuas mãos ficam vazias, não é?... – o míudo concordava com a cabeça.
- Mentira, pequeno... Ficam cheias dos sonhos que o barquinho leva na correnteza... O sonho que ele chegue a um porto acolhedor. O sonho que ele encontre outros barquinhos e juntos esfolem os joelhos numa regata até ao mar. O sonho que um papagaio colorido de papel o veja, bem lá do infinito do céu e se enamore daquele pequeno herói que vai, água fora, bramindo velas contra o vento... – e os olhos do velho Dinis seguiam as indicações da sua própria mão até ao azul levando atrás de si os olhos do menino. Desta vez, sorria. E uma lágrima de criança seguiu o curso das rugas naquele rosto cansado e desembocou em sal na boca. Fez um trejeito de brusquidão com o corpo como se quisesse expulsar um arrepio e pegou novamente na gaita de beiços. A música tirar-lhe-ia aquele sabor a si mesmo, a mundo.
Tocou. Tocou. Tocou até que os olhos da criança quase se fechavam enlevados pela serenidade do instante.
- Tantos sonhos podem nascer a montante dos rios, pequeno... Tantos quantas histórias de «Era uma vez». Vais sempre com uma sacola carregada de livros para a Escola, não é?... – o miúdo anuiu, novamente. Sentia-se aconchegado naquele recanto do jardim, entre as frésias e os ciprestes, como se a sombra das árvores fossem os seus lençóis e aqueles breves momentos passados com o velho Dinis, as suas histórias de adormecer. – Mas olha, não há páginas que cheguem para guardar todos os «Era uma vez...» Não podem chegar. Os sonhos não cabem em folhas de papel. Estão ainda nos meus olhos! Como é possível?... Todos estes anos passados sem ouvir histórias de encantar, sem ouvir o vento ao leme da maresia, sem sentir o odor do impossível num raio de luar... E os sonhos estão ainda nos meus olhos!... – a voz sumiu-se mas os olhos brilhavam como nunca. E ao fundo, a íris entardece-se...
Voltara a sentir o silêncio rumorizado das sebes, das árvores e dos passos. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.
Chorava. Como uma criança, como um velho poeta vagabundo chorava e o sal desembocava-lhe na boca. Sentado, de costas apoiadas no velho carvalho, deixara a mochila abandonada sobre a terra e as folhas ressequidas de Outono e a cabeça poisara-a sobre os joelhos apertados entre os braços. Uma leve brisa sacudiu-lhe o corpo de menino que aprendia a viver, fazendo-o soerguer-se um pouco e recostar-se ao tronco do velho carvalho. Levou as mãos aos bolsos. Um papelinho. Um papelinho do velho Dinis!... Como conseguira ele?... Deveria ter sido ontem, enquanto conversávamos aqui mesmo. Sempre o mesmo. Lembrava-se de o ouvir conversar com homens assim velhos como ele e de lhes dizer: não, poemas, nunca mais!... Mas papelinhos semeava-os por todos aqueles que lhe eram significativos. E deixara-lhe um papelinho a si... Começou a chorar convulsivamente molhando o papelinho do poeta vagabundo.
Lembras-te do ninho de pássaros que encontramos uma vez entre os braços do nosso velho carvalho?... Em cada árvore há um nicho de sonhos...
O velho Dinis morreu ontem. Atropelado. O poeta vagabundo ao olhar morreu em surdina. Shut!...
Em memória de Sebastião Alba, poeta vagabundo.
As expressões em itálico são versos roubados ao poeta.