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quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Do outro lado do Atlântico*



Estações do Acaso


                        Soletro os dias em cada coisa que me olha
                        quando me sinto a vê-la. É tudo.
                        E não há desculpas para o que faço.


                        Rosa Alice Branco


Acender o fogo pela sombra da chama.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Assim um corpo (dela) diz como deseja
ser escrito pelo outro (dele) que o visita.
Ensinar ao corpo como sair de si.
Traçar equidistâncias entre as quedas.
Os pormenores do fogo (ela afiança)
são o melhor regaço dentro do olhar.
E o fixa com tanto esmero que as dobras
do corpo se despem ante o ruído dos passos
(dela) que são vestígios da sumição
das roupas (dele). Por onde o enigma
apura suas harmonias? Por onde um corpo
aprende a soletrar o outro? (ela não diz)
Esvaziar a noite de vícios que a definam.
Deixá-la sem chance de reconhecer-se.
Estar a esboçar um tratado de trevas
requer a cegueira precisa em cada afeição.
Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?
Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?
Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se
um soletra o dia, o outro deslinda a noite.
Qual risco a língua desenha ao passar
de uma boca a outra? Não há exatidão,
exceto no desejo. Um corpo (ela o tenta),
ao cair no outro, é em si que repercute.
O amor tateia entre nódulos (ele matuta).
Uma atração sublime pelas dissonâncias
parece iludir a queda dos corpos amorosos.
O que tens no ventre (diz ele) é o abismo
de que me sirvo para um dia alcançar-me.
Apenas o acaso resguarda tais planos (ela).
Os corpos sondam o pendor pelo extremo.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Acender o fogo pela sombra da chama.

Floriano Martins*

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* Floriano Martins é brasileiro, ensaísta, professor e editor, sendo, com Cláudio Willer, também director da Agulha.

enviado por Nicolau Saião

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