segunda-feira, março 29, 2004
Árvore*
Gostava de ter árvores como alguns têm flores.
Árvores, muitas árvores: laranjeiras, pinheiros, uma oliveira ao pé
do mar, se eu tivesse uma casa a sotavento das dunas
como as que se adivinham em certos quadros de Cézanne
se a luz é muito clara e permanece
com velhos nomes gregos que não sei.
Nespereiras, limoeiros, uma que outra ameixoeira
parecendo, vistas de longe, ser
de uma substância estranha e desconhecida.
Não me importava, até, de em tardes de calor
ter dentro do meu quarto um abrunheiro donde pendesse
um decente e fraternal cadáver.
A verdade é que não me assusto facilmente
e tenho confiança no reino vegetal.
Malus sieboldi, catoneaster dielsiana, vós sois
os mais exactos filhos do mundo.
Gostaria de me rodear, um dia, de videiras
- essas árvores turvas da esperança -
e quando digo rodear sei o que digo, pois
queria que se enrolassem nos meus rins, nas espáduas
me descessem pelas pernas e lançassem
perto do meu sexo folhas novas
e que, ao lusco-fusco, enquanto no céu passam
os pequenos satélites mortais e luminosos que o desespero
do Homem lá coloca, por surpresa se transformassem
em plantas de gesso de frutos impensáveis.
Chego a perturbar-me por vezes se vejo
uma árvore junto a um hospital
Não sei porquê creio que me lembro mais
ou sinto mais
agudamente os níveis dolorosos das origens
do cristal, da carne
os esponjosos tecidos da sombra e da frescura
das cores da morte pronta para o grande tumulto.
Que medo, em certas noites, ver
de noite uma árvore
Sei perfeitamente que uma árvore é um símbolo
obscuro da nossa vida, principalmente da nossa vida
que não houve. Mas mesmo assim
dentro das ruas, dentro das casas
as árvores têm um outro entendimento
um mistério muito delas
- e não completamente inventados -
pois não desprezam a agonia dos homens, o choro dos homens
o seu riso, a sua fome, os sinais todos
que o Homem podia e devia ter.
As árvores começam e acabam sem amor
e sem ódio.
Nicolau Saião, Os Objectos Inquietantes,
Caminho, 1992.
_______________
Obrigada, Nicolau.
Gostava de ter árvores como alguns têm flores.
Árvores, muitas árvores: laranjeiras, pinheiros, uma oliveira ao pé
do mar, se eu tivesse uma casa a sotavento das dunas
como as que se adivinham em certos quadros de Cézanne
se a luz é muito clara e permanece
com velhos nomes gregos que não sei.
Nespereiras, limoeiros, uma que outra ameixoeira
parecendo, vistas de longe, ser
de uma substância estranha e desconhecida.
Não me importava, até, de em tardes de calor
ter dentro do meu quarto um abrunheiro donde pendesse
um decente e fraternal cadáver.
A verdade é que não me assusto facilmente
e tenho confiança no reino vegetal.
Malus sieboldi, catoneaster dielsiana, vós sois
os mais exactos filhos do mundo.
Gostaria de me rodear, um dia, de videiras
- essas árvores turvas da esperança -
e quando digo rodear sei o que digo, pois
queria que se enrolassem nos meus rins, nas espáduas
me descessem pelas pernas e lançassem
perto do meu sexo folhas novas
e que, ao lusco-fusco, enquanto no céu passam
os pequenos satélites mortais e luminosos que o desespero
do Homem lá coloca, por surpresa se transformassem
em plantas de gesso de frutos impensáveis.
Chego a perturbar-me por vezes se vejo
uma árvore junto a um hospital
Não sei porquê creio que me lembro mais
ou sinto mais
agudamente os níveis dolorosos das origens
do cristal, da carne
os esponjosos tecidos da sombra e da frescura
das cores da morte pronta para o grande tumulto.
Que medo, em certas noites, ver
de noite uma árvore
Sei perfeitamente que uma árvore é um símbolo
obscuro da nossa vida, principalmente da nossa vida
que não houve. Mas mesmo assim
dentro das ruas, dentro das casas
as árvores têm um outro entendimento
um mistério muito delas
- e não completamente inventados -
pois não desprezam a agonia dos homens, o choro dos homens
o seu riso, a sua fome, os sinais todos
que o Homem podia e devia ter.
As árvores começam e acabam sem amor
e sem ódio.
Nicolau Saião, Os Objectos Inquietantes,
Caminho, 1992.
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Obrigada, Nicolau.