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quinta-feira, março 25, 2004

verdades*

De cada vez que baralho recordações dou com aquela mulher /
nas orelhas cresciam-lhe flores para não ouvir os ruídos da dor/
de perfil parecia o oceano atlântico às 6 da tarde /
do outro lado era a minha tia à conversa com o seu outono /

dos seus olhos belíssimos descia às vezes um cavalo
que recitava comédias / a comédia do abandono (para esta punha quatro violetas na cauda) /
a comédia do encontro (saía-lhe um coelhinho do sul)
a comédia do espírito chuvoso ainda que pianístico / mas

o mais assombroso era vê-la na comédia do amor /
o seu coração suava como um estivador de puerto nuevo na carga e descarga de um barco russo /
ao mesmo tempo os olhos punham-se-lhe brancos como um esquimó /
a sua voz subia e descia as escadas do castelo de northumberland / bêbeda

como o meu pai e outros exemplares da minha delicada família /
[...]

como aquela mulher misturava a geografia /
tinha estudado numa escola oficial /
e assim em vez de suspirar / abanava
a cama cantando a marcha de são lourenço /

«nasce febo» cantava ela com uma espada na voz / enxugando a comédia de ontem /
«eis seus raios» cantava levantando a mesa / pondo os pratos no lava-loiça de amanhã
«e a coz do grande chefe» cantava na cozinha / apanhando
migalhinhas da conversa amorosa caída na toalha / ou

apagando de súbito a noite / as consequências da noite /
com a sua ternura infantil / pateta de todo /
quando discutia política era linda como a marilyn monroe /
na sua boca a revolução latino-americana parecia um quadro de rousseau /

havia sempre uma selva / um tigre ou uma leoa / uma lua cor-de-rosa
(não de róseos dedos) mistérios vegetais e animais / e
um par de pernas azuis que voavam como ela
quando o seu sorriso perfeito tinha cãibras antigas como em menina / isto é /

de quando era pequena e olhava para as paredes do mundo /
e pelo seu olhar passava a pé um burrico debaixo de sol /
e ela desembarcava às 6 da tarde com uma aldeia de outonos /
e assim começava a doçura /


Juan Gelman, No Avesso do Mundo, Col. Poetas em Mateus,
Quetzal Ed., 1998, Tradução Colectiva, revista por Ana Luísa Amaral.

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