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quinta-feira, maio 20, 2004

o possível*

[...] As pernas doíam-me e sentei-me no sofá, sentei-me e pensei que era esse o sítio em que menor probabilidade haveria de ser avistado desde o exterior, pensei também que essa hipótese não estava de todo eliminada e impus ao tronco e ao pescoço e à cabeça uma posição rígida, impus-me uma postura tensa e vigilante, suponho que é assim que se diz, embora eu nada vigiasse. Nada vigio agora, pensei, deixei de ser o observador e tornei-me a coisa observada, pelo menos tornei-me a coisa observada em potência e isto basta para me inquietar, talvez me inquiete mais do que saber-me observador, as possibilidades sempre me incomodaram mais que as ocorrências, não posso permanecer nesta posição de animal preso numa armadilha, tenho de escapar desta armadilha em que me deixei apanhar, vou erguer-me do sofá, vou erguer-me tão rígido como se continuasse sentado, quero dizer quase tão rígido, não posso estar sentado e levantar-me e manter-me tão rígido como se continuasse sentado, alguma parte do meu corpo terá de se flexibilizar, a começar pelas pernas, talvez isto signifique que o movimento flexibiliza os corpos, ou talvez não signifique nada, eu é que tenho este defeito racionalista de procurar sempre uma conclusão, vou então erguer-me e avançar com passos seguros, devo relaxar o corpo antes de me erguer, devo relaxá-lo para que o movimento resulte firme e harmonioso, sinto o corpo todo endurecido, apenas o sexo se conserva mole, vou relaxar o corpo antes de me erguer, então avançarei com passos seguros até ao interruptor eléctrico e desligarei a luz num movimento firme e harmonioso, desligarei a luz e regressarei do estatuto de coisa observada ao estatuto de observador, pelo menos regressarei ao estatuto de observador em potência e isto há-de bastar-me, afinal o possível sempre me interessou mais do que o efectivo. [...]

João Paulo Sousa, Os Enganos da Alma,
Quasi, 2002.

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