<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, agosto 23, 2004

Poema*

Passeio entre os pinheiros de S. Julião, entre fetos e castanheiros. Esmago os ouriços e fotografo-os. Disponho pedaços de forragem, cubro-os de urina e fotografo-os: são como uma beira de água num lago dos Andes. Os socalcos da montanha, para o lado sudeste da serra de S. Mamede formam espirais ao entardecer. O meu cão levanta um melro que, por um momento, é uma pequena mancha contra a parede derrocada de uma velha casa desabitada. Tiro seis fotografias que, depois, rasgo e recomponho com diferente estrutura. Fotografo a minha perna direita - primeiro com a calça arregaçada e, após, com a calça coberta por folhas de feto. Deixo que a noite a pouco e pouco apareça. Fotografo, então, junto a uma encruzilhada, um montão de detritos que alguém ali vasou: pedaços de tijolos, papelão com cimento agarrado, pedaços de arame. Perto há um bosque de carvalhos. Interno-me nele e fotografo as estrelas por entre os ramos. Invade-me uma alegria sem nome.

As flores em casa. Todas as manhãs, antes de ir para o emprego, depois de as regar, fotografo-as dispondo ao redor velhos casacos de malha, invólucros vazios de leite, guarda-chuvas... Depois faço desenhos a partir das fotografias: é um universo desconhecido, por vezes estarrecedor. As formas mudaram de cor, onde está negro esteve amarelo, ou verde claro, a estrutura de uma manga parece um réptil ou algo inominável. Deito feijões para uma garrafa de água, de plástico e agito tudo. Rodam em caprichosas volutas, subindo, descendo. Descendo, subindo... Faremos deles elementos de uma sopa, matérias das nossas próprias entranhas. Não, o homem não deve dissolver-se na Natureza. Revelador, deve permanecer livre, mas sem constranger o seu segredo. Por isso é que eu amo, sobretudo, aquilo a que se dá o nome de
floresta temperada. São os lugares da tília, do salgueiro, do agrião e da aveia. As plantas, afinal devem crescer sem que as estorvemos, mesmo com intuitos artísticos. No quintal de Arronches, junto ao muro do fundo, queimo todas as fotografias, todos os desenhos que fiz a partir delas. Recordações de diferentes coisas, momentos e lugares atravessam-me o pensamento. O meu cão contempla-me. Sinto-me nostálgico, talvez porque a tarde chega ao fim.

Nicolau Saião, Flauta de Pan, Ed. Colibri, 1998.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?