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sexta-feira, dezembro 05, 2003

a constituinte*
na minha rua (posso até vir a dizer que a casa dos meus pais não é a minha casa, mas aquela será sempre a minha rua) mora uma senhora que fez parte da constituinte. fez mesmo. por via das dúvidas fui confirmar e lá estava ela. visita-nos aos sábados, quase religiosamente. telefona e pergunta se é boa hora para nos visitar, de pouco me adiantaria dizer-lhe que não será a ideal. no fundo, quando me contou da sua aventura parlamentar queria era contar-me de sophia de mello breyner andresen. agora, todos os sábados temos a mesma conversa. pergunta-me se é em lisboa que estou, respondo-lhe que não, que em évora, e ela como se se lembrasse "pois claro, évora".
parece que é escusado, não sei falar de política.


-.-*
Não haver palavras és tu a desaparecer.

Bernardo Pinto de Almeida (surripiado d'a poesia vai acabar)

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és mais sombra se não te encostas a mim
és menos carne se as minhas mãos não se arriscam debaixo da tua roupa

e sou mais inclinada no caminho
e sou menos qualquer coisa que não se diz
— nunca acreditámos em felicidade


quarta-feira, dezembro 03, 2003

FIKE*
Imperdoável foi o meu silêncio acerca do FIKE. É verdade, entre 21 e 29 de Novembro, decorreu a terceira edição do Festival Internacional de Curtas Metragens de Évora. No último dia, tívemos oportunidade de assistir à sessão de encerramento com a atribuição dos diversos prémios, com direito a rever os filmes premiados.
Os pormenores sobre tudo isso poderão ser consultados no site oficial do evento. No entanto, apetece-me referir o vencedor do prémio atribuido pelo público: Harvie Krumpet, do australiano Adam Elliot.


Depois de o vermos, não surpreende que tenha sido este o filme escolhido pelo público, ele será, não duvido, o mais consensual. E depois é esta coisa do anti-herói, que não podia ser mais atraente, ou, neste caso, mais doce. Mas também irónico, e risível, muito, como se quer.
Ah, e depois a voz do Geoffrey Rush, o narrador que nos conduz ao longo da vida do Harvie.
Curiosamente, ou não, este filme saiu também premiado do 27º CINANIMA, onde lhe foi atribuido o Grande Prémio do Festival.

Sim, delicioso, Harvie.



segunda-feira, dezembro 01, 2003

em cada árvore um nicho de sonhos*

Hoje, li várias evocações a um livro (novo) do poeta Sebastião Alba: no silêncio, no stand-up e no Ene Coisas. Como comentei no silêncio, senti vontade de reler este conto, na impossibilidade de ler já «albas»:


Naquele jardim do Éden, a cargo do município, o Outono enraízava-se nos dias, em tons de folhas caídas e de um vento ainda com mãos de Verão. Um silêncio rumorizado alimentava-se das sebes, das árvores e dos passos que teimavam em percorrer o parque. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.


- Velho Dinis, fala-me de sonhos. O que são os sonhos?... – a criança tinha olhos da cor da noite e olhava-o como quem procura o último segredo do Universo. Olhos esfomeados de respostas. Todos os dias o procurava, depois da escola. E encontrava-o sempre. Sob as árvores a tocar a sua gaita de beiços. No banco da paragem de autocarro junto ao Centro Comercial Santa Tecla injuriando os impacientes passageiros. Numa qualquer rua de Braga passeando a poesia sem palavras num rumor de desprendimento.

- Sonhos?!... – o velho cofiou a barba com as mãos sujas de histórias e quase lhe apeteceu destecer a vida. Mandou as memórias à merda e fitou o miúdo dos olhos cor de perguntas, que todos os dias tinha o condão de o encontrar.

– Sonhos.. – parecia ainda hesitar, como se as palavras tivessem ganho o peso dos oceanos e dos corais escondidos e dos risos perdidos das baleias. Sim, porque ele trazia as unhas encardidas de terra, mas eram restos do Índico que lhe brilhavam nos olhos.

- ... os sonhos são pedaços de maresia guardados no meu olhar de terra... – olhava o céu inexpressivamente – São as minhas mãos a modelar bonecos de nuvem quando o céu está mais azul, são os vossos sorrisos cor de arco-íris a rebolarem-se no verde da relva de um qualquer jardim...

- Podia falar-te dos sonhos das árvores ou dos rios, pequeno... São os sonhos mais bonitos... Um dia lembra-me para te contar a história de uma canoa, a que um homem deu o nome de Rosinha. Sabias que canoa é árvore?... - o miúdo abanou a cabeça. Nunca tinha pensado nisso. Claro que canoa é árvore! Como é que nunca adivinhara?... – E as árvores têm muitas histórias. Muitas histórias... – parou de falar, subitamente. Como sempre acontecia. Já lhe conhecia aquelas perdas de rumo e os voos entrecruzados das palavras, semi-selvagens, quase ervas-daninhas. Sim, quase!... porque as suas palavras nada tinham de maldade. Vagabundeava também enquanto falava, mas nunca se perdia...

- É! Os sonhos trazem-se à flor dos olhos, da pele, das mãos... – tão repentinamente como se calava, a voz iluminava-se de novo – Quando lanças um barco de papel ao rio e ficas a vê-lo desaparecer na distância, as tuas mãos ficam vazias, não é?... – o míudo concordava com a cabeça.

- Mentira, pequeno... Ficam cheias dos sonhos que o barquinho leva na correnteza... O sonho que ele chegue a um porto acolhedor. O sonho que ele encontre outros barquinhos e juntos esfolem os joelhos numa regata até ao mar. O sonho que um papagaio colorido de papel o veja, bem lá do infinito do céu e se enamore daquele pequeno herói que vai, água fora, bramindo velas contra o vento... – e os olhos do velho Dinis seguiam as indicações da sua própria mão até ao azul levando atrás de si os olhos do menino. Desta vez, sorria. E uma lágrima de criança seguiu o curso das rugas naquele rosto cansado e desembocou em sal na boca. Fez um trejeito de brusquidão com o corpo como se quisesse expulsar um arrepio e pegou novamente na gaita de beiços. A música tirar-lhe-ia aquele sabor a si mesmo, a mundo.


Tocou. Tocou. Tocou até que os olhos da criança quase se fechavam enlevados pela serenidade do instante.

- Tantos sonhos podem nascer a montante dos rios, pequeno... Tantos quantas histórias de «Era uma vez». Vais sempre com uma sacola carregada de livros para a Escola, não é?... – o miúdo anuiu, novamente. Sentia-se aconchegado naquele recanto do jardim, entre as frésias e os ciprestes, como se a sombra das árvores fossem os seus lençóis e aqueles breves momentos passados com o velho Dinis, as suas histórias de adormecer. – Mas olha, não há páginas que cheguem para guardar todos os «Era uma vez...» Não podem chegar. Os sonhos não cabem em folhas de papel. Estão ainda nos meus olhos! Como é possível?... Todos estes anos passados sem ouvir histórias de encantar, sem ouvir o vento ao leme da maresia, sem sentir o odor do impossível num raio de luar... E os sonhos estão ainda nos meus olhos!... – a voz sumiu-se mas os olhos brilhavam como nunca. E ao fundo, a íris entardece-se...


Voltara a sentir o silêncio rumorizado das sebes, das árvores e dos passos. E dos violinos calados sob os velhos carvalhos. O rádio a pilhas sintonizado na Antena 2 não ouviria mais Paganini ou Bach, nem se comoveria com as sonatas de Schubert.

Chorava. Como uma criança, como um velho poeta vagabundo chorava e o sal desembocava-lhe na boca. Sentado, de costas apoiadas no velho carvalho, deixara a mochila abandonada sobre a terra e as folhas ressequidas de Outono e a cabeça poisara-a sobre os joelhos apertados entre os braços. Uma leve brisa sacudiu-lhe o corpo de menino que aprendia a viver, fazendo-o soerguer-se um pouco e recostar-se ao tronco do velho carvalho. Levou as mãos aos bolsos. Um papelinho. Um papelinho do velho Dinis!... Como conseguira ele?... Deveria ter sido ontem, enquanto conversávamos aqui mesmo. Sempre o mesmo. Lembrava-se de o ouvir conversar com homens assim velhos como ele e de lhes dizer: não, poemas, nunca mais!... Mas papelinhos semeava-os por todos aqueles que lhe eram significativos. E deixara-lhe um papelinho a si... Começou a chorar convulsivamente molhando o papelinho do poeta vagabundo.


Lembras-te do ninho de pássaros que encontramos uma vez entre os braços do nosso velho carvalho?... Em cada árvore há um nicho de sonhos...


O velho Dinis morreu ontem. Atropelado. O poeta vagabundo ao olhar morreu em surdina. Shut!...


Em memória de Sebastião Alba, poeta vagabundo.
As expressões em itálico são versos roubados ao poeta.

imagias #8


Henri Rousseau, The Sleeping Gypsy

não tenhas medo, é só um sonho. não há vampiros fora do quarto. na verdade, não há vampiros. acorda, vê se acordas, que isto é só um sonho. mas acorda, por favor, que mais do que um sonho mau, é dos que te fazem mal. não deixes que continue, pára com isso, acorda.
não tenhas medo, nunca o teu quarto esteve cheio de cobras. nem alguma vez estará.
não acredites, é um sonho. não é culpa tua, o sonho. que disparate, não chupaste o teu pai contra a sua vontade. pára de chorar. vais acordar com os olhos inchados. todos vão pensar que levaste a noite a chorar e ninguém vai acreditar que dormias. vamos, acorda, põe mão nisto.
não tenhas medo, não há um leão à socapa na noite, sobre o teu corpo. digo-to eu, será seguro e calmo se acordares. será brando e terno.
acorda. sabes que te receberá com um abraço todo braços e todo beijos. que te apertará junto a si e te dirá que já vai passar que não tenhas medo que já vai passar. sabes que só não te dá o que não pode, que o erro é teu, por quereres mais. sabes que é em sacrifício que se dá. sabes que não estarás mais só do que ontem, nem mais triste. só o cansaço será mais pesado, porque te permites estes sonhos, por isso importa que acordes.
um dia vais enlouquecer no sono, depois não sei como será. talvez não muito diferente, afinal. imagino que aí sim, um leão, velho. aí sim, o medo constante, e os resíduos de culpas e vergonhas de coisas que não sabes se sonhaste. não reconhecerás o abraço e a garganta vai estar presa de uma vontade mal engolida de correr o mundo. imagino que à procura. imagino que a fugir.


tempo para tudo*

além do que perguntas
haverá tempo para tudo

para a luz das luzes
a pélvis como pálpebras
para o silêncio dos silêncios
a cama como túmulo
para o cântico dos cânticos
a lí­ngua como sopro

além do que revelo
dar-te-ei tempo para as esperas

efeito de édipo*

Adensa-se o caminho,
ainda que revele o nevoeiro com os dedos
e descubra sobre as sombras
partículas de silêncio.

[Coincidentemente, alguém agora me diz
que este é o efeito de édipo: contribuimos
para aquilo que queremos evitar.
]

exercício #2*
Depois da próxima curva, a estrada acaba. Ainda assim, continuamos?

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