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sexta-feira, março 12, 2004

da simpatia...*

O farol, lá do seu cabo avisando navios na noite, deixou a sua luz chegar ao tempo dual. Ora bem, a saber, calhou ao tempo dual representar-se no farol esta passada quinta-feira (é dia de tema por lá, a quinta). O tema era "os signos" e aqui a menina não esteve com meias medidas, pés pelas mãos, qual astrologia, qual quê, respondi-lhes em semiótica. Valeu-me a simpatia e a boa vontade dos faroleiros. Em todo o caso, foi um prazer parar por aquelas bandas, restando-me apenas, em nome do tempo dual, agradecer o amabilíssimo convite.

.... e dizia assim:

dos signos
(1)

leio e vejo e o que leio e vejo
não é o significado óbvio denotado
— esqueci o sentido literal do mundo

perdi a expressão primeira do riso

sei que são sinais comunicantes estes signos
se tanto me dizem da mão invisível
e tão pouco de si
— um altar em frente feito ícone vazio

atento nos olhos todos da rua sem saber do quanto
mal contêm ou da quanta dor

sem esforço e sem
memória
um último símbolo
omega
seja ele “o grande”
seja ele “o fim”


cláudia caetano

(1) À volta dos conceitos de conteúdo e expressão (paralelos aos habituais significado e significante, assim como os interpretante e signo propostos por Peirce), de denotação e conotação de Louis Hjelmslev.

quinta-feira, março 11, 2004

...nós que somos os vivos.*

A CASA DOS MORTOS

Sub-reptícia, uma certa gravidade
se apodera de nós: um travo
residual morde as comisuras
do sorriso. No olhar com que olhamos
se demora outro olhar. No aceno
da mão pesa uma lentura inusitada.
Percebemo-lo na aresta de indefinido
mal-estar, na amargura que dura
enquanto dura o tempo de uma
lembrança furtiva. No ar, talvez
que respiramos de tudo o que foi
e fomos reverbera em nós
ardências e crepitações. Como um soluço
represo e interminável, eles persistem
desgarradamente presos à curvatura
dolorida dos nossos gestos. Eles
doem em nós uma presença muda
e grave. E emprestam a tudo
o que fazemos uma harmonia melancólica.
Com a maré baixa do seu terno desespero,
moram em nós que somos os vivos.

Rui Knopfli, Memória Consentida– 20 Anos de Poesia 1959/1979,
Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1982.


.*
fdp.

nada é o que parece*

Laranja cor de sangue

Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.


Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.

Charles Simic, Previsão de tempo para Utopia e Arredores,
Assírio & Alvim, 2002, Selecção e Tradução de José Alberto Oliveira.

quarta-feira, março 10, 2004

Devagar se vai ao longe*

É um ditado velho mas agora, aqui, tem a ver com um trocadilho deliberado: porque foi na livraria Ler Devagar, essa mesmo, a do cantinho da rua de S. Boaventura, nas lisboas onde dá gosto apessoarmo-nos, que António Sáez Delgado, Ruy Ventura e - como apresentador - José Luís Peixoto, nos deixaram um pouco mais reconciliados com a existência ao lançarem os seus livros, respectivamente Dias, fumo(com capa do autor) e Assim se deixa uma casa (capa de Augusto Raínho).

José Luís Peixoto, escritor e ser humano que dá gosto frequentar, foi como sempre incisivo e brilhante – mas do brilho real daquilo que é verdadeiro (é um autor que não fala por falar) e que tem a ver com o mundo que todos nós sonhamos; Sáez Delgado, poeta de excelências interiores e de fino humor pessoal, temperado com a caballerosidad extremenha que sempre nos apraz sentir, deu-nos em espanhol e em lusitano um fragmento desse seu universo tão peculiar onde o dramatismo realça a desejável simplicidade da vida, das coisas, das ruas, do próprio rio Guadiana, o grande rio do sul partilhado por duas nações e, o que ainda é melhor, por poetas dos dois países. Por último, Ruy Ventura cruzou como autor e leitor – num gesto que se vai tornando cada vez mais necessário nesta sociedade que prima em desgraçar-nos – o seu percurso com o de dois grandes poetas que o vómito urbano, entre outras coisas tristes, tenta ocultar mesmo para além da morte, como se não bastasse a discrição que os rodeou enquanto vivos: Nuno Guimarães e Cristóvam Pavia. No seu texto de apresentação, RV chamou a capítulo Pessoa e o seu “Heróstrato”, “livro muito perigoso para os tempos que correm e, por isso, tão pouco citado”.

Já não ia a Lisboa – o que se chama ir, com voltinhas pelos lugares amados, olhares e andares repletos de nostalgia – há uns 4 anos (como talvez saibam, perco-me e acho-me em Espanha, extremaduras e andaluzias no mínimo, que a fronteira me fica à porta de casa). Por meu bem, por meu mal? Não sei, é assim. Mas quando, no fim de dois dias criadores com gente do peito, se tem como corolário uma sessão destas, digna e humana e sem pontinha de aperaltação e presunção – damo-nos graças pelo nosso reencontro com a capital do império – que por um par de horas foi para nós capital de luminosa e pura “beleza de uma raridade” (sic RV) a poesia do que de facto conta como exemplo e função de vida.

enviado por Nicolau Saião

terça-feira, março 09, 2004

venenos*

Veneno consumido na íntegra. Ainda se não notam os efeitos, apesar de ontem, enquanto esperava no Guarany ao mesmo tempo que a noite caía sobre a cidade e as luzes anunciavam outras sombras, já me tivesse aproximado das pálpebras. Guardei o livro a tempo de afastar outras leituras. Gumes recolhidos como mastros nus, ancorados num tempo qualquer. Tudo é uma questão de memória ou esquecimento. De um nome ou do silêncio. Mas não pondero fraquezas em tudo isto. Percursos assim fazem parte de certas claridades.


Acharás, como eu, que este livro surpreende menos? (Fala-me mais mas surpreende-me menos.) Irá a Alexandra falar dele para a semana?

um instante antes de cair*

CANTO SEGUNDO

Esta manhã mal saí do portão
parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa.
Dois passos até ao damasqueiro
e toca a regressar.

Agora que nada resta para fazer
fico sentado diante da janela
e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo?

Deitei fogo a páginas de livros, a calendários
e mapas. Para mim a América
já não existe, a Austrália igualmente,
a China na minha cabeça é uma fragância,
a Rússia uma alva teia de aranha
e a África o sonho de um copo com água.

Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês,
que procura o mel das abelhas selvagens.

Tonino Guerra, O Mel,
Assírio & Alvim, 2004, Trad. de Mário Rui de Oliveira.

______________

A mim não me interessa nada como o mundo se organiza: interessa-me o modo como me estou organizando. Páro a escutar que chove; ofereço o olhar a cada entardecer e sou feliz, como ontem fui, ao aprender que as flores da cerejeira alcançam o máximo da sua brancura um instante antes de cair e morrer.

Sou um poeta. Um fulano qualquer que caminha ligeiramente levantado da terra e que, de vez em quando, cai, estatelando os tacões e enchendo-se de infelicidade.

Tonino Guerra, para recordar aqui e visitar aqui.

segunda-feira, março 08, 2004

do frio*

Tenho frio junto aos mananciais. Subi até cansar
o coração.

Há erva negra nas ladeiras e açucenas roxas entre
sombras, mas, - que faço diante do abismo?

Sob as águias* silenciosas, a imensidão carece de sig-
nificado.

[p. 9]

Pássaros. Atravessam chuvas e países no erros dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.

Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.

[p. 61]

Antonio Gamoneda, Livro do Frio,
Assírio & Alvim, 1999, Trad. de José Bento.


*Por duas ou três vezes, li «águas». Talvez por fazer todo e o mesmo sentido.

domingo, março 07, 2004

...*

1
Já nada escondem,
as magnólias.

2
Os dias ameaçam abrir
todas as flores.

3
Já não há silêncio,
só claridade.

4
Enceno poemas
– pouso em ti os meus lábios –
no fundo de cada manhã.


Sandra Costa

imagias #14


Mayte Bayon, Desencuentro

Mayte Bayon

Segredos quem os tem

Se fosse só
a toalha aos quadrados, o gato na soleira
o pão torrado, o peixe frito
era caso para lançar ao vento
muitos quilos de infinito
músicas de outrora, terrores
e uma que outra solidão pintada

Mas desta forma
não é preciso:
há sempre o mar, o frio, essências

e outros jogos eternos e inocentes.

Nicolau Saião

À mesa também há poesia*

CODORNIZES À FIALHO DE ALMEIDA, UM REQUINTE
Nuno Rebocho

Tempos houve em que os literatos se faziam honras de cozinheiros. Dos melhores. Tão excelentes nas lides das letras como nas da gamela. O bom do Fialho de Almeida, se louvava o país das uvas, tinha também artes de culinária que ainda hoje deslumbram tanto como o esplendor da prosa. Disso tive prova em Alvito, em casa de amigos, onde arribei para janta. Reservaram-me um pitéu: codornizes à Fialho de Almeida. Banzaram-me!
Eu digo-vos. Ficaram as avezitas a marinar de um dia para o outro, em marinada heróica: em vinho, alecrim e rosmaninho, azeitona descaroçada. Mas antes de banharem nesta calda, os bichos tiveram trato. Bem esfregadas de alho, sal e pimenta e um tudo muito nada de canela (sem abuso, apenas para lhe dar o cheiro). Chegado o momento de ir à frigideira de barro, as codornizes foram retiradas da marinada, enxugadas num pano, que deveriam seguir secas à vida. Que essa era a regra antes do assalto final: na frigideira, aqueceram um palmo de azeite, a que lhe acrescentaram uma colher de banha e aí aloiraram alho, para mitigarem a gorduranca com uma colher de sopa de vinho do porto. E foi neste requinte que as codornizes fritaram!
Retiradas para a travessa as codornizes, aproveitaram os despojos da fritada para cozerem a marinada na frigideira: o molho com o qual as codornizes foram regadas. Divino! O senhor Fialho de Almeida tinha arte. Se duvidam, ensaiem. Em verdade vos digo que não sei o que mais adorar: se a truculência azorragante de “Os Gatos”, se a excelência do manjar. E fiquei grato a esses amigos de Alvito.

enviado por Nicolau Saião

de vez em quando, a tua voz*

De vez em quando, desenho a tua voz sobre o tampo
da secretária, timbre grave em madeira escura
como se fosse ontem que a ouvisse pela primeira vez,
como se a tua ausência não existisse no exercício
dos ventos sobre as superfícies ou dos lodos sobre
as profundidades, de vez em quando não me espanto
com a erosão do silêncio sobre os poemas.


Sandra Costa

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