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sábado, agosto 09, 2003

a decisão*

As manhãs derramam-se
sobre os ombros
e eles permanecem
nús.

Colhes uma haste de fogo
numa lua de verão
e nenhuma noite
se perde.

O que a madrugada
exibe, os nomes
escondem.

A decisão de te amar
nada tem a ver contigo.

apresentando David a claire #5*
Tenho bem mais dificuldade em seleccionar-lhe(te) alguns poemas. Se, de facto, tenho um que considero o meu poema (que podes ler aqui, p.e.), não é menos verdade que gosto muito da sua poesia na globalidade. Abro a sua Obra Poética e quase todos me comovem à flor da pele, como só ele assim soube escrever. Deixo-te, então, apenas o início deste Interior com o desafio implícito de que o procures.

É bom ouvir de noite uma trompa de caça
Despir depressa a túnica da Lua
E descobrir o amor no forro de uma casa
onde apenas vibrava a memória da chuva

David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Ed. Presença, 1997

apresentando David a claire #4*

«Chegar, deitar-se: por vezes os dois actos sucedem-se e encadeiam-se com tal rapidez como se entre ambos não decorre, hesitante ou cegamente precipitada, aquela operação, um tanto mágica à força de tão simples, de primeiro se descalçar, de logo em seguida se despir.

Deitada de través em cima do largo divã, os seus braços tomam de súbito a postura de dois ramos oblíquos, na quase pânica expectativa de sentir-se adorada. Devagar os vai depois estreitando, até que ficam inteiramente estirados para trás; mas já as pernas entretanto começaram a reproduzir, em posição inversa, o grafismo da mesma letra.

Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E surpreendo-me a murmurar: Ípsilon...) Além de não querer nem poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa; ou o que menos deveria interessar-nos. Mas só o facto de lhe chamar Y já a torna diferente de quem ela é, de quem eu julgo que ela seja.»

David Mourão-Ferreira, Um amor feliz, Ed. Presença, 1999

apresentando David a claire #3*

«... Era justamente o que eu ia dizer! Tudo se prende, em última instância (pelo menos na aparência), a esse outro problema. Mas aí é que está: jamais descobriremos se a Maria Antónia se suicidou ou não se suicidou. Já sabes o que penso a tal respeito: agora é que ela não tinha razões nanhumas para se suicidar; no entanto, a Maria Antónia era pessoa para se suicidar, precisamente quando não tivesse razões nenhumas para isso. Suponhamos, porém, que foi um acidente: a verdade é que um acidente pode muito bem ser uma das armas do destino; e, em contrapartida, não será a natureza - uma natureza cansada, depauperada, gasta antes do tempo - a responsável por um acidente daquele género? Suponhamos, agora, que não foi um acidente: e nunca saberemos até que ponto é que a livre vontade da Maria Antónia, por muito livre que parecesse, não estaria comandada pelo destino ou subornada pela natureza.

Ora até que enfim te vejo sorrir. É isso, meu caro: falo sempre como advogado. De qualquer modo, bem vês: esta última incógnita (a da morte), mesmo quando ficasse devidamente esclarecida, nunca bastaria para explicar a outra: a vida, a vida da Maria Antónia.»

in Tal e qual o que era, 1957

David Mourão-Ferreira, Gaivotas em Terra, Ed. Presença, 1998

apresentando David a claire #2*

«A esta hora? A esta hora, em Tóquio e em Quioto já serão três ou quatro da tarde. E subitamente percebes - como nunca até hoje te aconteceu - que esta madrugada, depois de ter passado, há umas poucas de horas, por um lugar onde neste instante poderias encontrar-te, ainda é a mesma, no fim de contas, que também ontem aqui se anunciou, a mesma que já anteontem aqui surgiu, a mesma que vem da semana anterior, do ano passado, do século transacto, de há milhares de outros séculos, de há milhares de milénios, a mesma-sempre-diferente desde o começo do Mundo. Sempre a mesma madrugada a correr atrás da Terra. Ou, melhor, sempre a Terra no encalço da mesma madrugada.

Sabes, Erika? Enquanto sobre a Terra te encontrares, não poderás impedir-te, mesmo que o não saibas, de também procederes, melhor ou pior, como a própria Terra vai procedendo.»

in Erika e a Madrugada, 1980

David Mourão-Ferreira, As Quatro Estações, Ed. Presença, 1998

apresentando David a claire #1*
Há coisas que são imperdoáveis. Uma delas é que David Mourão-Ferreira seja um desconhecido para o little black spot. Assim sendo, David esta é claire; claire este é David:

«Já estou ajoelhado ao pé de ti. Agora compreendo que se compare à cor do ébano a cor dos cabelos como os teus, que se compare à cor do âmbar a cor que tem a tua pele. E digo "âmbar", para ver se te acordo; e digo "ébano", a ver se te comovo. Olho-te os beiços: digo "morango". Olho-te os peitos: e digo "noite", "roda da noite" a cada um. Olho-te o sexo: repito "noite", uma vez mais.

Entretanto, na telefonia, cessou o trecho de música sacra. É agora a voz de um locutor, a ler um comunicado oficial. Dominada a revolta. Calma absoluta em todo o território. Feitos prisioneiros os principais cabecilhas da rebelião. À excepção de um que teve de ser abatido a tiro, quando, na fuga, procurava atingir a cidade.

E finalmente deito-me a teu lado. Não sei bem se a teu lado ou se dentro de ti.»

in Os amantes, 1968

David Mourão-Ferreira, Os Amantes e outros contos, Ed. Presença, 1998

sexta-feira, agosto 08, 2003

Ruy Belo*
Tracejadamente cheguei aqui.

alguns blogs por onde anda a poesia #3*

-- tracejado --
Outro Lado da Lua
Palavras & Letras
rain song
um desejo de nada

[continua e um dia destes faz-se o resumo]

da escrita,*
'roubando' o título de um post ao bicho que escala estantes. Há textos assim, que nos deixam a pensar, que nos fazem escrever, que nos remetem para a partilha. E como o Vincent até queria comentários, resolvi participar:

«Mas, entre os, talvez, cinquenta ou sessenta colegas de trabalho que já tive, fui encontrando aqui e ali os responsáveis pelos algarismos dessa percentagem tão pequena. Foi de um deles, muito mais velho que eu, talvez na casa dos quarenta, que recebi a maior dica para entender a minha escrita.
Já havíamos falado muito sobre essa paixão de escrever, o que gostávamos e não gostávamos, durante muitas horas ao longo de meses. Mas, dessa vez, este homem, que ainda não tinha publicado nenhum livro nem nunca me quis mostrar nada do que já tinha escrito, disse-me assim
- Olha, vou-te dar um conselho. Tens de perceber que para se ser bom escritor tens de seguir esta regra: De fora para dentro- e repetiu- de fora para dentro.
[...]
Quem escreve tem de ser um intérprete do mundo, da sua beleza e fealdade, dos seus tormentos e maravilhas. Deste modo, ao sermos de certo modo um actor que se exprime em páginas, em vez de palco, tela ou ecrã, somos um espelho que absorve as imagens e as envia de volta para os leitores, para dentro dos seus sonhos e realidades, bem acomodados e estruturados.Eu, que provavelmente nunca verei um livro editado com o meu nome na capa, sei isto. Parece-me que, infelizmente, muitos dos autores dos livros que eu vendo, não. Mas aposto que os grandes sabem. E disto gostava de receber comentários.
(Vincent Bengelsdorf)

Caro Vincent,
também eu gostava de saber isso, saber no sentido da expressão, mas nem sempre a necessidade é a de interpretar o mundo e então perdemo-nos em interioridades que se fecham sobre si mesmas. Podia cair na tentação de escrever que a poesia é mais permissiva a isto mas não é verdade. Se calhar, a poesia até é a forma mais 'fácil' de interpretar o mundo quando se consegue encontrar as imagens exactas e perfeitas e há poetas ou poemas onde isso acontece.

Por outro lado, pergunto-me também se o exercício de dentro para fora, do auto-conhecimento, da auto-reflexão, não será igualmente uma forma de revelar o mundo ou partir para o mundo? Quantas vezes já encontrei num elemento, numa paisagem, numa história passada, num quotidiano observado, a imagem perfeita para o que estava a sentir e a tentar escrever? Como se o processo fosse uma simbiose entre o mundo e o eu e não uma relação de sentido unívoco. E até será isto mesmo que o Vincent está a descrever: um escritor deve ser capaz de conseguir construir um mundo onde cada leitor se identifique ou se estranhe, onde cada leitor re-apreenda o que o rodeia através de uma combinação de palavras que se transformam em não-palavras mas imagens tridimensionais - em si, suas e de um outro (do autor) - e assim sempre diferentes, independentemente do ponto de partida. E eu é que levei à letra o «de fora para dentro». Ou não?»

p.s. - Mas leiam o post do Vincent na íntegra que esse é que vale a pena.

quinta-feira, agosto 07, 2003

clAud e claire*
Hoje, por aqui, blogou-se de outra forma. As dualidades estiveram juntas pela primeira vez e ainda foram acompanhadas por uma pequena mancha de sóis negros que irradia luz à sua volta. Coisas da não-blogosfera. Infelizmente, só nos lembrámos de um poema a seis mãos quando eu já estava com um pé no regresso. Em compensação (ou como vingança), desafiei as meninas para que terminassem a tarde na Fnac.

quarta-feira, agosto 06, 2003

maldade*

«É que nesse momento a Maria Antónia amava. E, quando se ama, quando se ama daquela maneira, a maldade (embora não desapareça, como muita gente julga) não se vai assim desperdiçar com terceiras pessoas: toda ela se concentra no próprio amor, no acto e no objecto do amor; e a melhor parte é necessária para se transformar em volúpia - que é já uma formazinha de malvadez.»


David Mourão-Ferreira, Gaivotas em terra, Editorial Presença, 1998

54 graus à sombra*
na Janela Indiscreta. Quem diria que esta seria uma tentação de Verão?

terça-feira, agosto 05, 2003

búzio do árctico #1

é puro desenlace a matéria âmbar destas tardes
perdi-te onde o caule das nuvens se parte entre os dedos
e ainda agora me parece inverosímil este céu todo
sobre os ombros

como insustentável é a tua ausência sobre a decisão
de não mais contrariar a ruína há muito anunciada

e se todas as fórmulas com que me concedo a chuva
são possíveis
é para que um pouco de mar lave
esta pedra do meu peito

só assim em cada fim de tarde o desenlace é perfeito
como um círculo, matéria âmbar dos regressos.


....................................................................................
Retomando o fio dos mares, o Búzio do Árctico
regressa ao seu ofício de fazer estremecer o silêncio. Aqui e aqui.


segunda-feira, agosto 04, 2003

imagias #3


Sunrise with Sea Monsters,
Turner, John Mallord William (1775-1851)


Não interessa em que manhã o monstro
despontou sobre o mar quebrando os azuis
como se esse fosse o desígnio mais fácil do sol:

creio que os monstros têm olhos tristes
e precedem as lágrimas que inflamam
de naufrágios a matéria invisível dos poemas.

(alguém, eventualmente, deixou de amar
e uma rígida explosão aconteceu
sobre todas as coisas indispensáveis)

dualidades mínimas #15

Queria segurar o caule do silêncio
entre as mãos para que a tua morte
demorasse para sempre.

domingo, agosto 03, 2003

aviso: post muito longo*
tendo a evitar textos longos no monitor, os olhos ressentem-se muito. mas isto. trata-se de um dos meus pedaços favoritos de literatura, não o consegui cortar. assim sendo, cá vai, de um fôlego só.

Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora – quase sem reparar – cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, davam-lhe o ar de uma criatura que não pertencia a este mundo.
Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada – o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo – a do silêncio – a do sonho.

Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse á grande nódoa de humidade da parede.

Sei que chorou, mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios – a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?

Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas mais belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, num silêncio, nas coisas suspensas na luz – nos botões quase a abrir.

Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.

O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas...

É que há, entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.

Mas há, entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. – Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!

Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!

Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e te pertenço.


Raul Brandão, Húmus, Porto Editora, 1991

actualizando,*
enquanto o calor ainda é suportável e acabo a salada de frutas. Novos links ali ao lado:

A Espuma dos Dias
A Natureza do Mal
aqui não há poeta
Homem a Dias
Lugar da incerteza
Não esperem nada de mim
No Arame
Palavras & Letras
rain song
Ruialme

férias*
a meio da tarde a luz falhou para já só voltar ao início da noite. por essa altura, senti o cheiro a pastos queimados. sai à rua e um calor ainda mais seco e um nevoeiro, ou como que um nevoeiro, e pequeníssimas cinzas colando-se à pele, trazidas pelo vento que vinha de lá, de onde ardiam as árvores. aqui do bairro, como é alto, podia ver-se o ponto exacto onde começava a nuvem de fumo negro que se substituiu ao meu céu, tal como se via, certamente a toque de vento, o levantar de uma ou outra labareda acima das árvores. o sol ainda alto, mas já vermelho, entre um e outro véu de beata em luto de missa de sétimo dia. depois, presumo que o vento começou a soprar de cá para lá – ou fui eu quem soprou – e o cheiro menos intenso e as cinzas todas caindo no chão. limpar os parapeitos das janelas salpicados de preto.
há pouco, fui fechar a janela da cozinha e de novo o cheiro.
isto tudo, por um fogo que só avisto.
.........................

entretanto, depois de escrever isto, andei a passear por aí. parece que toda a gente tem um fogo mesmo ali ao lado. parece também que, o mais das vezes, está controlado, mas, sabemo-lo bem, se de repente um pé de vento...


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