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sábado, janeiro 10, 2004

resposta a camisolas e tardes de sábado*

Sabia que, a ela, ninguém
amara perdidamente e por isso,
enquanto as outras pensavam
no amor apesar das camisolas
e das tardes de sábado,
ela - a mesma - permanecia,
como Penélope,
junto à árvore das magnólias
num tom de claridade.

um dorso de Caravaggio*

Um dorso de Caravaggio
e é a luz que no ombro toca
que me permite musicar o poema
e fazer-te estremecer,
junto ao ouvido.

elogio da sombra #6



O corpo enquanto arte, Don DeLillo
Relógio d'Água, 2001

Ontem, enquanto fazia compasso de espera para a hora mais ou menos combinada do jantar em casa de F., deixei-me ficar no carro, estacionado na Rua de Santo Isidro, com um livro encostado ao volante e, por impulso, a Antena 2 a sair para a rua por uma nesga de janela aberta.

Nunca tinha ouvido falar em Don DeLillo até ao regresso natalício do meu irmão que me trouxe Berlim na arte do muro e num mapa. Trouxe também o Tomás uma lista de livros que queria levar, se possível em português, mas o DeLillo até poderia ser em inglês. Encontrámo-lo editado pela Relógio d'Água mas a encomenda só chegou ontem e ele já partiu.

Assim, quando vi a capa do livro - um dorso de Caravaggio - deu-me aquela vontade perversa que por vezes me assalta perante determinadas prendas que eu própria destino a algumas pessoas, a de as tomar para mim, ainda que só temporariamente. E foi o que fiz, com a improvável mas determinante circunstância de, por momentos e cumulativamente, ter ficado extasiada com um Adágio de Anton Bruckner.

O corpo enquanto arte começa assim:

O tempo parece escoar-se. O mundo acontece, prolonga-se numa sucessão de momentos e nós detemo-nos a olhar uma aranha espalmada contra a sua teia. Há na luz um fulgor que leva a que os objectos nos pareçam recortados com precisão, enquanto faixas brilhantes percorrem a baía. Sabemos melhor quem somos num dia de intensa claridade, depois de um temporal, quando o sentimento de si trespassa todas as folhas que caem, mesmo as mais pequenas. O vento rumoreja entre os pinheiros e o mundo adquire uma existência irreversível e a aranha agaraa-se à teia que o vento faz baloiçar.,

mas não vos digo quem é Lauren Hartke.

Por coincidência (?), a preferida de uma parte do Mal também hoje fala de e com Don DeLillo. E ele diz-me esta coisa inexplicável: "Prefiro permanecer entre as sombras. E é para aí que me dirijo, a partir de agora." Diz-me, digo...?

coisa nenhuma*

colecciono partículas de coisa nenhuma
-- senti-me tentada em chamar-lhes vento --
por cada sombra de silêncio que rompo
com um poema

[levemente ásperas como guardo, para mim,
o teu rosto]

quinta-feira, janeiro 08, 2004

recebido por mail:*
"Será inaugurada no sábado, dia 10 de Janeiro, pelas 16 horas, no Arquivo Histórico / Casa do Infante, no Porto, a exposição dos originais e dos poemas das edições Uma Prenda Para Eugénio com Algumas Túlipas e Os Dóceis Animais.

Às 17 horas, será exibido o filme Eugénio de Andrade – Vida e Obra, produzido pela Estrutura do Projecto Básico Mediatizado.

No dia 17, pelas 16 horas, terá lugar, no mesmo local, a apresentação destas obras por Isabel Pires de Lima e Laura Castro, numa iniciativa de Edições ASA e da Câmara Municipal do Porto.

Uma Prenda Para Eugénio com Algumas Túlipas conta com 67 pinturas e poemas dedicados a Eugénio de Andrade nos seus 80 anos, da autoria de pintores como Graça Morais, José Rodrigues, Júlio Resende e de poetas como Herberto Hélder, José Carlos de Vasconcelos, José Viale Moutinho, Luísa Dacosta, Manuel Alegre, Manuel António Pina, Maria Alzira Seixo, Mário Cláudio e Vasco Graça Moura, entre outros. Os Dóceis Animais reúne os poemas que Eugénio de Andrade escreveu sobre gatos, bem como doze desenhos e um retrato do autor por Cristina Valadas."

recebido por sms:*
"hoje, lançamento da antologia de poesia do Daniel Faria, na Biblioteca Almeida Garrett, às 21:30."

imagias #9


Josephine Sacabo, Hombre Noctambula

entra no quarto sem perguntas
uma porta aberta dispensa perguntas
e quem te espera sabe que fazes por perder tempo

retoma o gesto iniciado na manhã dos
minutos desperdiçados como se o estar
já acordado fosse ainda um resto do sonho

espera-se que sejas breve
que deposites o que é de depositar
e que não perturbes a disposição dos objectos

não é necessário que entres
na verdade não fará a menor diferença
mas é importante que se atribua algum significado
ou alguma consequência a isso de estares aí

não se quer maior o confrangimento


quarta-feira, janeiro 07, 2004

um poema*
para o Rui, por coisa nenhuma:

Crescemos à procura do vento

no parapeito das janelas, no último
ramo das árvores, na textura do
horizonte sobre os navios, nos
ombros descaí­dos das estátuas,
na superfí­cie dos rios ou do riso,

que nos espantamos se os poemas,
de súbito, se aquietam à sombra
da tarde.

[ainda que um pressentimento.]

dualidades mí­nimas #35

Convence-me que a nudez
é o silêncio que procuro na poesia:

só assim me poderás tocar.

ballester*
Un día cualquiera, las ondas de
mi navío
me llevarán al presentido
allende,
y a lo mejor encuentro en ese
arcano
el ideal de piedra y de palabras:
el sol al fondo, y en las ondas, el
alma.


Gonzalo Torrente Ballester

terça-feira, janeiro 06, 2004

Re: Re: Re: Re: Re: Re: Re: »~«*

onde as palavras permaneçam pronunciáveis
para serem abertas pelo pulso e se diga sangue
em vez de livro

onde os corpos se decidam a ser corpos
e a mão em concha penetre percorra esse regresso
mais do que antigo até ao mar

onde as noites sejam absolutas e nem as centopeias
perturbem se pressinto o tojo ou uma fonte
no lugar das mãos

onde as infâncias doam sempre um pouco menos
ainda que seja impossí­vel se as renomeio e lhes
venho aqui chamar de amor

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Re: Re: Re: Re:Re: »~«*
onde nenhuma esquina se dobra
e a cal começa pelos pés comendo o corpo

onde a espera é resguardada das lágrimas
— velhos sejam os olhos

onde havia um fogão a lenha usado para
cozer o pão e os murros largados nas manhãs
eram de tender e de sorrisos

onde agora endurecem e secam as mãos de já ser
um pouco tarde e nem sequer o café ser morno


xisto #2*



Venha a noite e nos proteja
dessa mulher que ronda as casas
como se fora o frio do Inverno:
não reparem nos olhos dela
a dizerem que já é tarde e que, devagar,
deverí­amos começar a morrer.

         Não há melhor alegoria para a morte
         do que vê-la penetrar estas pedras negras
         que agora sustentam tectos,
         ainda que no interior da noite, ou do medo,
         permaneça o brilho das salamandras.

xisto #1*



Não tenho vontade de preparar a infância
para que aconteça de novo,
ainda que a sombra das árvores dê laranjas
a quem passe no caminho
e isso, dizem-me, é o Inverno.


..........................................................

O mais provável é que ela não fosse aquela que ali estava, por volta do meio-dia a caminhar perto das oliveiras e a tentar, como lhe mostravam, lançar as pedras como os pastores. Não o conseguiu. Era necessário um movimento de pulso que não se condoesse com poemas e soubesse, na carne e nos músculos, o que era a lonjura. Podia ter ficado triste mas, com as suas frágeis flores amarelas, a giesta negral contrariava o Inverno e ela conservou uma entre os dedos até àquela casa que não era sua.

domingo, janeiro 04, 2004

ainda uma prenda de Natal para o Mário*

moçoila

todas as tardes a esperava
rente ao muro e, como o sol quando
se faz sombra, deixava-a passar
com o seu olhar escondido

todas as tardes o mesmo ângulo
para a objectiva, a luz cada vez
mais perfeita, a saia rodada
só ao de leve a mostrar a perna

todas as tardes sem que ela
se decidisse a lhe revelar o mundo

Sandra Costa

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