sábado, abril 17, 2004
Se me demoro mais um pouco
a ouvir os pássaros pela manhã
sei que a luz é o começo
de todas as coisas – ou
do que se quer dizer com isso –
Sandra Costa
Introdução ao Canto
Ergue-te de mim
pura chama do meu canto,
Luz terrestre, fragrância
Ergue-te, jasmim.
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde.
Eugénio de Andrade in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
sexta-feira, abril 16, 2004
Instituto Camões, Especial 25 de Abril: 25 anos
Cena de Libertação nos Jardins do Palácio de Epaminondas, Imperador
Como um vasto programa contra a poeira
contra a erosão das operações da noite
um braço apenas um braço
sai em liberdade
a parte útil rodeada de escombros
os dispositivos especiais dissimulados atrás
de misteriosas armas incorporadas
Nada que se pareça com centenas de escudis
ou com a sensação de segurança
essa forma de anel sobre as melhores cidades
que estrangula não mata aperta não afoga
um braço apenas um braço hábil solução do conjunto
um braço sai em liberdade
Mário Cesariny in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
SOZINHO governei
|
*
|
a minha tristeza
|
Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí),
Assírio & Alvim, 2004, Trad. de Manuel Resende.
quinta-feira, abril 15, 2004
Visão, Especial 25 de Abril
Liberdade é o teu nome
Eu não poderia conceber-te
se fosse um homem só
no meu deserto
se não desse um passo para um outro
se não o ouvisse no meu silêncio
respirar
se eu não quisesse ser o outro
entre os meus ombros
se não pudesse reconhecer
que o outro era eu o outro
que falava com este e com aquele
o outro com todos os outros
o outro que eram todos como um só
que não estava só em todos
e eras tu na liberdade de outra vida
a liberdade que respirava em todos nós
eras tu era por ti sob a asfixia
que eu e todos te reconhecíamos
nos reconhecíamos
eras tu ainda sem podermos hastear a tua bandeira
sem podermos gritar o teu nome
abertamente na alegria da vitória
eras tu em nós através das fronteiras e dos muros
que respiravas em nós
era por ti por todos nós que nós lutávamos
António Ramos Rosa in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
1.
Escrevo este tempo com passos cobertos de sombras, por uma rua estreita e muros almejados de silêncio, onde o mundo não ergue as linhas que delimitam as margens inundadas, as árvores maduras ou a dança nocturna dos peixes celestes e sob os meus pés desfilam as primeiras ânforas que depois do sol ficaram guardadas para sempre.
A meio do caminho, o homem descansou. Nem ele sabia o que ainda lhe faltava percorrer nem era um pequeno deus a contemplar o vinho derramado mas, com o que lhe sobrava da sede, traçou sobre o pó da terra um fio que logo ali dividiu o que fora feito e o que havia ainda a fazer. Incluiu-se no lado esquerdo daquele mundo porque habituado a olhar para o Norte sempre gostara de ver a luz desaparecer no horizonte para dar lugar à textura invariável das coisas: a parede azul da casa a dar lugar ao desejo contido para além da rugosidade da pedra, naquela mulher existente antes de todas as ombreiras das portas.
– Contudo, sobre o pó da terra continuarão a passar os escorpiões e no rasto dos livros que todos os poetas não escreveram a morte será sempre mais bela, ainda que infalível, e virá um pássaro de muito longe abeirar-se da loucura e das agulhas dos pinheiros.
[continua]
quarta-feira, abril 14, 2004
Imagem usada em Cartaz 25 de Abril, Editor: PCP
Liberdade
Este animal
que trago no peito, por dentro, acocorado
remordendo o silêncio
- como salalés roendo o barro -
perfurando as sombras com os seus olhos grandes
Escavando sulcos no silêncio,
Acocorado.
Este animal que trago nervoso
No peito,
Retesando os músculos, pronto para saltar
Este animal que no estreito
Silêncio de mim se agita
E abre a enorme boca pronto para gritar.
Este animal que em mim se move
Em mim habita
Este animal que ninguém poderá jamais domesticar.
José Eduardo Agualusa in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Il rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!"
Charles Baudelaire
baixa os olhos comigo
até às pontas dos pés onde habitam as vergonhas
(nós que pensavamos a meio caminho)
atiça os calcanhares como cães como raiva de morder a
terra ou dá-me o corpo para correr mais longe a hora
para já detenhamo-nos onde nos convém
onde o cansaço e o sono te ganham os braços
e eu te ganho a boca de beijos e de segredos
cláudia caetano
terça-feira, abril 13, 2004
Susan Sontag, entrecortada por Ursula Rucker, P. J. Harvey, Patti Smith e Laurie Anderson: os maiores artistas atingem uma sublime neutralidade.
posted by alc, 17:30 PM, somewhere
#1 | Encontrar um poeta debaixo de uma árvore.
#2 | Apanhar uma nuvem com as mãos e entrar na paisagem.
#3 | A meio da montanha, tirar do bolso as âncoras.
#4 | Dizer deste mundo só as madrugadas.
#5 | Levar os frutos à boca como se olha uma obra de arte.
#6 | Descer ao covil dos segredos e surpreender o amor.
#7 | Nomear as flores e o medo.
Cartaz 25 de Abril, Editor: A25A, 1985
Para que tu, Liberdade
Cresci a sonhar contigo, tu sabes,
com a pressa ansiosa dos amantes,
todos os dias, sem descanso ou desalento,
imaginando a claridade do teu olhar sereno,
o rumor secreto da tua voz marinha,
o embalo de onda do teu sono de menina.
Um dia tu chegaste e ergueste a tua casa
na mansa vizinhança dos meus sonhos,
paredes meias com o esplendor do cravos.
Partilhei contigo o alpendre das estrelas
onde os meus filhos brincaram e cresceram,
onde eu brinquei também com os búzios e as sombras
e te prometi fidelidade eterna,
imitando as juras das paixões mais ardentes.
Ambos envelhecemos desde então,
dorso arqueado pelo peso ingrato
do mais amargo desencanto,
sem nunca renunciarmos à felicidade
que um dia prometemos um ao outro.
Fomos nós que envelhecemos
ou foi a alegria que se exilou do nosso olhar?
Foi Abril que perdeu o fulgor primordial
ou fomos nós que deixámos de o merecer,
luz fugidia a escapar por entre os dedos?
Amanhã acordarás numa cama de pétalas,
com a tristeza mitigada pela música dos pássaros,
e eu estarei a teu lado, como quem renasce,
para que tu, Liberdade, caso de amor da minha vida,
nunca morras de abandono nos meus sonhos.
José Jorge Letria in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
segunda-feira, abril 12, 2004
[...] e sob os meus pés desfilam as primeiras ânforas que depois do sol ficaram guardadas para sempre.
Il fait dimanche
Il fait dimanche quand tu souris
Et par les persiennes baissées
Un rayon de soleil rougit
Les murs de notre nid douillet
Il fait dimanche au bord de l'eau
Vin blanc glacé sous les glycines
Quand sur ta bouche reviennent les mots
Ces premiers mots que l'on devine
Il fait dimanche et tous les jours...
A chaque fois que tu souris
C'est la revanche de l'amour
Sur le temps qui passe sans bruit
Il fait dimanche à Marrakech
Dans l'ombre d'une de ses ruelles
Quand je vole sur tes lèvres fraîches
Le sucré des cornes de gazelle
Il fait dimanche et tous les jours...
A chaque fois que tu souris
C'est la revanche de l'amour
Sur le temps qui passe sans bruit
Il fait dimanche en bord de mer
Quand je compte en grains tes baisers
Même le plus grand des déserts
N'emplirait pas mon sablier
Il fait dimanche et tous les jours...
A chaque fois que tu souris
C'est la revanche de l'amour
Sur le temps qui passe sans bruit
Sur le temps qui passe sans bruit
Sur le temps qui passe sans bruit
Sur le temps qui passe sans bruit
Henri Salvador, Chambre avec vue
Cartaz 25 de Abril, Editor: A25A, 1991
Liberdade
Pôr no peito a liberdade
dobada na sua entrega
compondo alma e avesso
que mesmo assim não sossega
Liberdade sem bandeira
em país reencontrado
Coração incendiado
num Portugal que por certo
não lhe quer perder o hábito
Flor posta à botoeira
cousa que brota e não cessa
E rara experiência é essa
poder escrever liberdade
sendo livre e já sem pressa
Maria Teresa Horta in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
domingo, abril 11, 2004
Maria Velez, A Cultura é a Liberdade do Povo, 1974
A pele da madrugada
Cada dia tenho menos uma letra,
uma boca e a mão para a dizer.
Fui colhendo a noite, palavras surdas,
o silêncio que a morte continua
sob a pele da madrugada.
Cada dia tenho menos um coração,
menos uma noite. Resta-me a memória
de abril dentro um copo de esquecimento,
o fundo da liberdade
que alguém bebeu de nós:
a canção morena da alegria,
o cravo ao rubro de fundir a paz.
Menos uma boca, uma criança
alada. Menos uma cidade onde a esperança
se cola ao rosto. Os meus passos presos
ao chão são menos o olhar que a manhã
oferece. Mas era uma vez e aconteceu
um dia, em todos os outros desse dia,
por muito tempo e ainda agora:
acordar, pôr o café na chávena
e barrar o pão com a liberdade.
Rosa Alice Branco in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião