sábado, abril 03, 2004
Abril #3*
Pires Vieira
Liberdade
Viemos com o peso do passado e da semente
esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
só se pode querer tudo quanto não se teve nada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
a paz o pão
habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir.
Sérgio Godinho, Canções de Sérgio Godinho
Assírio e Alvim.
Pires Vieira
Liberdade
Viemos com o peso do passado e da semente
esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
só se pode querer tudo quanto não se teve nada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
a paz o pão
habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir.
Sérgio Godinho, Canções de Sérgio Godinho
Assírio e Alvim.
sexta-feira, abril 02, 2004
Nuvem de pó*
No Vale das Crateras, uma ou duas vezes em cada cem anos, um vento, uma espécie de nuvem de pó, sopra do fundo da terra, e pelos funis enxutos das crateras sobe, lambendo como a língua dos gatos, por três dias, as casas e as faces dos habitantes daquele lugar. Então, todos perdem a memória: os filhos deixam de reconhecer os pais, as mulheres os maridos, as raparigas os namorados, as crianças os pais e tudo se torna um caos de sentimentos novos.
Depois cessa o redemoinho dentro das crateras e, lentamente, cada coisa volta ao seu lugar, não recordando ninguém o que, dentro da nuvem de pó, aconteceu nesses três dias.
Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
Assírio & Alvim, 2002, Trad. de Mário Rui de Oliveira.
No Vale das Crateras, uma ou duas vezes em cada cem anos, um vento, uma espécie de nuvem de pó, sopra do fundo da terra, e pelos funis enxutos das crateras sobe, lambendo como a língua dos gatos, por três dias, as casas e as faces dos habitantes daquele lugar. Então, todos perdem a memória: os filhos deixam de reconhecer os pais, as mulheres os maridos, as raparigas os namorados, as crianças os pais e tudo se torna um caos de sentimentos novos.
Depois cessa o redemoinho dentro das crateras e, lentamente, cada coisa volta ao seu lugar, não recordando ninguém o que, dentro da nuvem de pó, aconteceu nesses três dias.
Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
Assírio & Alvim, 2002, Trad. de Mário Rui de Oliveira.
Abril #2*
António Colaço
Soneto de Abril
Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.
Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.
Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.
Evoé! evoé! Tágides minhas
outras vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.
Natália Correia, PoemAbril - Antologia de autores organizada por
Carlos Loures e Manuel Simões,
Fora do Texto, 1994
António Colaço
Soneto de Abril
Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.
Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.
Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.
Evoé! evoé! Tágides minhas
outras vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.
Natália Correia, PoemAbril - Antologia de autores organizada por
Carlos Loures e Manuel Simões,
Fora do Texto, 1994
quinta-feira, abril 01, 2004
Abril #1*
Vieira da Silva
Abril de Abril
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia, D. Quixote.
Vieira da Silva
Abril de Abril
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia, D. Quixote.
quarta-feira, março 31, 2004
flores azuis que não sei identificar*
Estendo o braço até tocar
a sombra da tarde
- não quero outro exercício
enquanto fragmento de poema -
e é provável que as flores azuis,
que não sei identificar na berma
da estrada, amanhã já lá não
estejam, tão frágil é o meu
entendimento do mundo.
Sandra Costa
Estendo o braço até tocar
a sombra da tarde
- não quero outro exercício
enquanto fragmento de poema -
e é provável que as flores azuis,
que não sei identificar na berma
da estrada, amanhã já lá não
estejam, tão frágil é o meu
entendimento do mundo.
Sandra Costa
terça-feira, março 30, 2004
Hoje,*
não esqueci: Todos mis poemas nacen del amor.
Eu ainda não tenho o livro acetinado. Levei o cor de laranja e parei o carro no sítio do costume. Gorecki já tocava e, entre as árvores e a chuva, a infância durava tanto quanto a dos lobos. Não acrescento a última frase, porque são fugazes as coisas humanas e o som de um violino paira ainda no ar descerrando a noite cerrada. Dizem-me que a palavra do poeta ateará a revolta mas eu agora não sei o que foi verdade.
Outro fim do mundo não haverá,
outro fim do mundo não haverá.
__________________
17:30| Alexandra Lucas Coelho, Antena 2
dizendo:
#1| Folheto
#2| Retrato de mulher
#3| A curta vida de nossos antepassados
#4| Fotografia de 11 de Setembro
#5| Campo di fiori
#6| Canção do fim do mundo
#7| Nem mais
#8| Tão pouco
de Wislawa Szimborska e Czeslaw Milosz, Alguns gostam de poesia,
Cavalo de Ferro, 2004.
com a 3.ª Sinfonia de Gorecki por perto.
Obrigada, Alexandra.
..............................
Qualquer imprecisão é da minha responsabilidade e da chuva.
não esqueci: Todos mis poemas nacen del amor.
Eu ainda não tenho o livro acetinado. Levei o cor de laranja e parei o carro no sítio do costume. Gorecki já tocava e, entre as árvores e a chuva, a infância durava tanto quanto a dos lobos. Não acrescento a última frase, porque são fugazes as coisas humanas e o som de um violino paira ainda no ar descerrando a noite cerrada. Dizem-me que a palavra do poeta ateará a revolta mas eu agora não sei o que foi verdade.
Outro fim do mundo não haverá,
outro fim do mundo não haverá.
__________________
17:30| Alexandra Lucas Coelho, Antena 2
dizendo:
#1| Folheto
#2| Retrato de mulher
#3| A curta vida de nossos antepassados
#4| Fotografia de 11 de Setembro
#5| Campo di fiori
#6| Canção do fim do mundo
#7| Nem mais
#8| Tão pouco
de Wislawa Szimborska e Czeslaw Milosz, Alguns gostam de poesia,
Cavalo de Ferro, 2004.
com a 3.ª Sinfonia de Gorecki por perto.
Obrigada, Alexandra.
..............................
Qualquer imprecisão é da minha responsabilidade e da chuva.
a honra da menina*
"(...) Quando a mulher, o ser superior, se rebaixa, as consequências são horríveis. Primeiro, o exterior determina o fundo da vida. A economia manda na gente, a lei regula a família, a política decide da felicidade. Como se pode considerar um progresso a mulher-soldado?
Segundo, o fundo da vida degrada-se. São hoje esquecidas e atacadas as duas razões mais próprias da glória feminina, o encanto da virgindade e a grandeza da maternidade. O engano é tal que vemos mulheres apreciar como ganhos a perversão da maternidade pelo aborto, da virgindade pela libertinagem, da família pelo divórcio. Cedem à promiscuidade e pornografia, velhas obsessões varonis. A promoção da homossexualidade baralha até os dados da natureza.
Felizmente que, apesar da tirania da opinião, grande parte das mulheres resiste à pressão e preserva a superioridade. A virgindade e a maternidade brilham ainda neste tempo confuso. E, juntas na mesma pessoa, cintilam no mais alto dos céus, acima de toda a criatura."
J. C. das Neves
Eu sei, eu sei...
Que não é para levar a sério. Que ninguém, no seu perfeito juízo, leva. Que, se dou voz ao disparate, só ajudo a espalhá-lo. E até sei que aquilo ali dispensa comentários. Mas é tão difícil resistir. E, é verdade, já me apanhou o bichinho, esse das obsessões varonis, como não ceder à pornografia? A gente sabe que aquilo é uma porcaria, que a gente decente não se detém com aquelas coisas, mas a gente cede, porque a gente é fraca, fraca na dimensão varonil da fraqueza. E como não olhar para aquele pedaço de texto e não lhe reconhecer a pornografia, na dimensão desonesta da pornografia, também, porque obscena?
A verdade? A verdade é que sou um anjinho. Um anjinho assustado. Sim, acredito que, muitas vezes, falamos com desrespeito e desconsideração daquilo que nos assusta (sou dada a clichés). As conclusões irresponsáveis que se poderiam tirar daqui não deixam de me divertir, só muito parcialmente, claro. Por um lado, dir-se-ia que tenho medo dos varões maus da economia que sujam e desonram as meninas como eu. Por outro lado, dir-se-ia que o J.C. teme mulheres que se masturbam à uma da manhã enquanto vêem canais codificados... isso e que lhe vão ao cu. Mas, como disse, isto tudo são disparates, coisas ditas sem senso, responsabilidade, ou vergonha.
Nota curiosa: às tantas, enquanto escrevia isto, uma porca, cantava:
Concubine. Cunt. Bitch. Whore. Stunt. Witch. Dyke
Concubine. Cunt. Bitch. Whore. Stunt. Witch. Dyke
... abençoada...
"(...) Quando a mulher, o ser superior, se rebaixa, as consequências são horríveis. Primeiro, o exterior determina o fundo da vida. A economia manda na gente, a lei regula a família, a política decide da felicidade. Como se pode considerar um progresso a mulher-soldado?
Segundo, o fundo da vida degrada-se. São hoje esquecidas e atacadas as duas razões mais próprias da glória feminina, o encanto da virgindade e a grandeza da maternidade. O engano é tal que vemos mulheres apreciar como ganhos a perversão da maternidade pelo aborto, da virgindade pela libertinagem, da família pelo divórcio. Cedem à promiscuidade e pornografia, velhas obsessões varonis. A promoção da homossexualidade baralha até os dados da natureza.
Felizmente que, apesar da tirania da opinião, grande parte das mulheres resiste à pressão e preserva a superioridade. A virgindade e a maternidade brilham ainda neste tempo confuso. E, juntas na mesma pessoa, cintilam no mais alto dos céus, acima de toda a criatura."
J. C. das Neves
Eu sei, eu sei...
Que não é para levar a sério. Que ninguém, no seu perfeito juízo, leva. Que, se dou voz ao disparate, só ajudo a espalhá-lo. E até sei que aquilo ali dispensa comentários. Mas é tão difícil resistir. E, é verdade, já me apanhou o bichinho, esse das obsessões varonis, como não ceder à pornografia? A gente sabe que aquilo é uma porcaria, que a gente decente não se detém com aquelas coisas, mas a gente cede, porque a gente é fraca, fraca na dimensão varonil da fraqueza. E como não olhar para aquele pedaço de texto e não lhe reconhecer a pornografia, na dimensão desonesta da pornografia, também, porque obscena?
A verdade? A verdade é que sou um anjinho. Um anjinho assustado. Sim, acredito que, muitas vezes, falamos com desrespeito e desconsideração daquilo que nos assusta (sou dada a clichés). As conclusões irresponsáveis que se poderiam tirar daqui não deixam de me divertir, só muito parcialmente, claro. Por um lado, dir-se-ia que tenho medo dos varões maus da economia que sujam e desonram as meninas como eu. Por outro lado, dir-se-ia que o J.C. teme mulheres que se masturbam à uma da manhã enquanto vêem canais codificados... isso e que lhe vão ao cu. Mas, como disse, isto tudo são disparates, coisas ditas sem senso, responsabilidade, ou vergonha.
Nota curiosa: às tantas, enquanto escrevia isto, uma porca, cantava:
Concubine. Cunt. Bitch. Whore. Stunt. Witch. Dyke
Concubine. Cunt. Bitch. Whore. Stunt. Witch. Dyke
... abençoada...
segunda-feira, março 29, 2004
Amanhã*
Amanhã, passaremos despercebidos. Ficarás ainda mais absorto ao balcão, prolongarás um sorriso como se dobra uma folha de papel e antes que os utentes desconfiem levarás a mão ao coração como se ali não existissem néons. O iPod resulta na perfeição. Eu pararei o carro no sítio do costume, entre a urze e o cheiro dos pinheiros, e fecharei os olhos desta vez como nunca fazem os poetas (porque a meteorologia não me promete um sol branco para o entardecer). Amanhã, passaremos despercebidos. Dizes tu ao serviço de uma emoção sem nome.
***
[...]
Retiro o braço de sob a cabeça adormecida,
entorpecido, crivado de alfinetes repontantes.
Na cabeça de cada um, à espera que os contem,
vieram-se sentar os anjos derrubados. --
Wislawa Szymborska, Paisagem com Grão de Areia,
Relógio d'Água, 1998, Trad. de Júlio Sousa Gomes.
Amanhã, passaremos despercebidos. Ficarás ainda mais absorto ao balcão, prolongarás um sorriso como se dobra uma folha de papel e antes que os utentes desconfiem levarás a mão ao coração como se ali não existissem néons. O iPod resulta na perfeição. Eu pararei o carro no sítio do costume, entre a urze e o cheiro dos pinheiros, e fecharei os olhos desta vez como nunca fazem os poetas (porque a meteorologia não me promete um sol branco para o entardecer). Amanhã, passaremos despercebidos. Dizes tu ao serviço de uma emoção sem nome.
***
[...]
Retiro o braço de sob a cabeça adormecida,
entorpecido, crivado de alfinetes repontantes.
Na cabeça de cada um, à espera que os contem,
vieram-se sentar os anjos derrubados. --
Wislawa Szymborska, Paisagem com Grão de Areia,
Relógio d'Água, 1998, Trad. de Júlio Sousa Gomes.
Árvore*
Gostava de ter árvores como alguns têm flores.
Árvores, muitas árvores: laranjeiras, pinheiros, uma oliveira ao pé
do mar, se eu tivesse uma casa a sotavento das dunas
como as que se adivinham em certos quadros de Cézanne
se a luz é muito clara e permanece
com velhos nomes gregos que não sei.
Nespereiras, limoeiros, uma que outra ameixoeira
parecendo, vistas de longe, ser
de uma substância estranha e desconhecida.
Não me importava, até, de em tardes de calor
ter dentro do meu quarto um abrunheiro donde pendesse
um decente e fraternal cadáver.
A verdade é que não me assusto facilmente
e tenho confiança no reino vegetal.
Malus sieboldi, catoneaster dielsiana, vós sois
os mais exactos filhos do mundo.
Gostaria de me rodear, um dia, de videiras
- essas árvores turvas da esperança -
e quando digo rodear sei o que digo, pois
queria que se enrolassem nos meus rins, nas espáduas
me descessem pelas pernas e lançassem
perto do meu sexo folhas novas
e que, ao lusco-fusco, enquanto no céu passam
os pequenos satélites mortais e luminosos que o desespero
do Homem lá coloca, por surpresa se transformassem
em plantas de gesso de frutos impensáveis.
Chego a perturbar-me por vezes se vejo
uma árvore junto a um hospital
Não sei porquê creio que me lembro mais
ou sinto mais
agudamente os níveis dolorosos das origens
do cristal, da carne
os esponjosos tecidos da sombra e da frescura
das cores da morte pronta para o grande tumulto.
Que medo, em certas noites, ver
de noite uma árvore
Sei perfeitamente que uma árvore é um símbolo
obscuro da nossa vida, principalmente da nossa vida
que não houve. Mas mesmo assim
dentro das ruas, dentro das casas
as árvores têm um outro entendimento
um mistério muito delas
- e não completamente inventados -
pois não desprezam a agonia dos homens, o choro dos homens
o seu riso, a sua fome, os sinais todos
que o Homem podia e devia ter.
As árvores começam e acabam sem amor
e sem ódio.
Nicolau Saião, Os Objectos Inquietantes,
Caminho, 1992.
_______________
Obrigada, Nicolau.
Gostava de ter árvores como alguns têm flores.
Árvores, muitas árvores: laranjeiras, pinheiros, uma oliveira ao pé
do mar, se eu tivesse uma casa a sotavento das dunas
como as que se adivinham em certos quadros de Cézanne
se a luz é muito clara e permanece
com velhos nomes gregos que não sei.
Nespereiras, limoeiros, uma que outra ameixoeira
parecendo, vistas de longe, ser
de uma substância estranha e desconhecida.
Não me importava, até, de em tardes de calor
ter dentro do meu quarto um abrunheiro donde pendesse
um decente e fraternal cadáver.
A verdade é que não me assusto facilmente
e tenho confiança no reino vegetal.
Malus sieboldi, catoneaster dielsiana, vós sois
os mais exactos filhos do mundo.
Gostaria de me rodear, um dia, de videiras
- essas árvores turvas da esperança -
e quando digo rodear sei o que digo, pois
queria que se enrolassem nos meus rins, nas espáduas
me descessem pelas pernas e lançassem
perto do meu sexo folhas novas
e que, ao lusco-fusco, enquanto no céu passam
os pequenos satélites mortais e luminosos que o desespero
do Homem lá coloca, por surpresa se transformassem
em plantas de gesso de frutos impensáveis.
Chego a perturbar-me por vezes se vejo
uma árvore junto a um hospital
Não sei porquê creio que me lembro mais
ou sinto mais
agudamente os níveis dolorosos das origens
do cristal, da carne
os esponjosos tecidos da sombra e da frescura
das cores da morte pronta para o grande tumulto.
Que medo, em certas noites, ver
de noite uma árvore
Sei perfeitamente que uma árvore é um símbolo
obscuro da nossa vida, principalmente da nossa vida
que não houve. Mas mesmo assim
dentro das ruas, dentro das casas
as árvores têm um outro entendimento
um mistério muito delas
- e não completamente inventados -
pois não desprezam a agonia dos homens, o choro dos homens
o seu riso, a sua fome, os sinais todos
que o Homem podia e devia ter.
As árvores começam e acabam sem amor
e sem ódio.
Nicolau Saião, Os Objectos Inquietantes,
Caminho, 1992.
_______________
Obrigada, Nicolau.
][][][][*
é como a raiva antes do ranger dos dentes
dos punhos cerrados— cuidados de unhas vincadas nas palmas—
é como o medo antes do suor frio na nuca
dos joelhos fracos— muito antes da bexiga descontrolada—
(seria como as raízes antes do solo seco
da rocha fechada— a água a entrar no esquecimento—)
é a deslocação do ar se te colocas na berma da auto-estrada
é quando tudo passa por ti e sabe-lo apenas porque os cabelos
mexeram ou cresceram
— tempo ou movimento— exactamente a mesma coisa
cláudia caetano
é como a raiva antes do ranger dos dentes
dos punhos cerrados— cuidados de unhas vincadas nas palmas—
é como o medo antes do suor frio na nuca
dos joelhos fracos— muito antes da bexiga descontrolada—
(seria como as raízes antes do solo seco
da rocha fechada— a água a entrar no esquecimento—)
é a deslocação do ar se te colocas na berma da auto-estrada
é quando tudo passa por ti e sabe-lo apenas porque os cabelos
mexeram ou cresceram
— tempo ou movimento— exactamente a mesma coisa
cláudia caetano
domingo, março 28, 2004
.*
1
Aquieto-me
com um sopro sobre os ombros.
2
Eram manhãs
contempladas como água.
3
Nenhum excesso
do lado dos avessos – o que abro?
4
O princípio é o meu pé
a afeiçoar-se à sombra dos poetas.
Sandra Costa
1
Aquieto-me
com um sopro sobre os ombros.
2
Eram manhãs
contempladas como água.
3
Nenhum excesso
do lado dos avessos – o que abro?
4
O princípio é o meu pé
a afeiçoar-se à sombra dos poetas.
Sandra Costa
cinco poemas para sustentar a tarde #5*
Dentro das minhas mãos é, agora, madrugada.
Corto o pulso ao poema. Invento a rima.
Dou à paixão uma forma feminina.
A morna intriga do tempo paira
sobre os meus passos. E contorno,
nos lábios, palavras tão lentas
como veleiros presos ao silêncio.
É pela noite, quando as madressilvas
adejam, perfumadas sobre emboscados
silêncios, que posso imaginar o teu regresso.
Graça Pires, Uma certa forma de errância,
Ed. Ausência, 2003.
Dentro das minhas mãos é, agora, madrugada.
Corto o pulso ao poema. Invento a rima.
Dou à paixão uma forma feminina.
A morna intriga do tempo paira
sobre os meus passos. E contorno,
nos lábios, palavras tão lentas
como veleiros presos ao silêncio.
É pela noite, quando as madressilvas
adejam, perfumadas sobre emboscados
silêncios, que posso imaginar o teu regresso.
Graça Pires, Uma certa forma de errância,
Ed. Ausência, 2003.
cinco poemas para sustentar a tarde #4*
peçam-lhe que venha tão
depressa, digam-lhe que
não durmo e que estarei
no telhado entristecida a
desbotar ao sol
incomodando os pássaros
cada vez menos
valter hugo mãe, o resto da minha alegria,
Cadernos do Campo Alegre, N.º 7, 2003.
peçam-lhe que venha tão
depressa, digam-lhe que
não durmo e que estarei
no telhado entristecida a
desbotar ao sol
incomodando os pássaros
cada vez menos
valter hugo mãe, o resto da minha alegria,
Cadernos do Campo Alegre, N.º 7, 2003.
cinco poemas para sustentar a tarde #3*
Canto Nono
Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.
Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.
Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.
Tonino Guerra, O Mel,
Assírio & Alvim, 2004, Trad. Mário Rui de Oliveira.
Canto Nono
Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.
Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.
Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.
Tonino Guerra, O Mel,
Assírio & Alvim, 2004, Trad. Mário Rui de Oliveira.
cinco poemas para sustentar a tarde #2*
Num muro da cidade de Barcelos
Mas isto: conter a morte, a morte toda, ainda antes da vida,
tão docemente contê-la e não ser mau, isto é indescritível
Rainer Maria Rilke
Um verso pode muito pouco
até os de Rilke fotografados repetidas vezes
nos muros abandonados do velho teatro Gil Vicente
quando damos por nós sem nada
vivos apenas nesta ou noutra cidade
o barro sonoro
tocado por uma criança
– rouxinol cuco e ocarina –
é o nosso único segredo
contra a morte
Mário Rui de Oliveira, Bairro Judaico,
Assírio & Alvim, 2003.
Num muro da cidade de Barcelos
Mas isto: conter a morte, a morte toda, ainda antes da vida,
tão docemente contê-la e não ser mau, isto é indescritível
Rainer Maria Rilke
Um verso pode muito pouco
até os de Rilke fotografados repetidas vezes
nos muros abandonados do velho teatro Gil Vicente
quando damos por nós sem nada
vivos apenas nesta ou noutra cidade
o barro sonoro
tocado por uma criança
– rouxinol cuco e ocarina –
é o nosso único segredo
contra a morte
Mário Rui de Oliveira, Bairro Judaico,
Assírio & Alvim, 2003.
cinco poemas para sustentar a tarde #1*
Que fizeram
que fizeram daquele dia cheio de tigres suaves
como a tua pele / ou ninhos loucos
onde tremiam os teus tecidos
dando a entender outra canção / não esta
cheia de folhas de sal /
tinham-te crescido olhos de sol /
começavam-te nos pés as pernas da luz /
e ninguém recebia cartas do nada /
que fizeram daquele tigre
cheio de dias / suavidades / tu /
como as árvores que desenhavas
para dar sombra a meio da noite /
contra este fogo crepitando
triste no olhar do pensamento /
Juan Gelman, No Avesso do Mundo, Col. Poetas em Mateus,
Quetzal Ed., 1998, Tradução Colectiva, revista por Ana Luísa Amaral.
Que fizeram
que fizeram daquele dia cheio de tigres suaves
como a tua pele / ou ninhos loucos
onde tremiam os teus tecidos
dando a entender outra canção / não esta
cheia de folhas de sal /
tinham-te crescido olhos de sol /
começavam-te nos pés as pernas da luz /
e ninguém recebia cartas do nada /
que fizeram daquele tigre
cheio de dias / suavidades / tu /
como as árvores que desenhavas
para dar sombra a meio da noite /
contra este fogo crepitando
triste no olhar do pensamento /
Juan Gelman, No Avesso do Mundo, Col. Poetas em Mateus,
Quetzal Ed., 1998, Tradução Colectiva, revista por Ana Luísa Amaral.
o ofício de viver #2*
1946| 28 de Março
Quando lavamos as mãos numa torneira, dá-nos vontade de mijar. Belo exemplo de magia simpática. Compreende-se que os selvagens acreditassem chamar a chuva ao espalharem água ou esperma.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.
1946| 28 de Março
Quando lavamos as mãos numa torneira, dá-nos vontade de mijar. Belo exemplo de magia simpática. Compreende-se que os selvagens acreditassem chamar a chuva ao espalharem água ou esperma.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.