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sábado, janeiro 17, 2004

... a mesma pessoa que regressa.*

Quando se perde alguém nunca é
exactamente a mesma pessoa que regressa.
*


Ela encontrou a frase na extremidade do poema,
o passo seguinte era o abismo,
mas demorou-lhe uma noite inteira decifrar
o que de imediato a fez estremecer
entre silêncios.

Quando a manhã abriu por completo
a parede contrária à janela, colocou,
ao mesmo tempo,
os dois pés fora da cama.

Sandra Costa


* Dois últimos versos de 'Teme-se que se tenha afogado'
de Sharon Olds, em tradução de Margarida Vale de Gato.
Aqui. Agrade-se muito ao Granito.

eros #2


Modigliani

largo a nudez pela casa como
quem disfarça o desejo ou amansa
a fome por meio da lassidão

e largo um cheiro de cio
para que saibas dos cantos em
que me escondo


quinta-feira, janeiro 15, 2004

O medo*

Não temo aproximar-me do limite,
dessa transparência onde os deuses
assistem à queda dos graves e quase
se magoam por não terem os pés
sobre a terra ou daquilo que chamas
inclinação para a angústia como
se fosse coincidência esta pressa
de tudo classificares. Não temo
ainda que seja evidente que uso
as palavras por antecipação.

Sandra Costa

Outono: lugar frágil*
chegou ao fim. Para que o Inverno (me) doa menos:

Do ponto mais alto da minha infância,
talvez se aviste o mar. Deve haver um lugar,
onde os barcos se encontram para morrer
sobre as quilhas. Quem disse que nunca
chega a anoitecer nos olhos dos que
ostentam um grito de aves no declíneo
das pálpebras? Com os pés exilados,
guardo, no regaço, os ventos e as sombras,
para amparar as dunas: tão frágeis à hora do poente.


Graça Pires, Uma certa forma de errância,
Ed. Ausência, 2003.

as mimosas #2 [corrigido]*

As manhãs

Das manhãs
Apenas levarei a tua voz
Despovoada
Sem promessas
Sem barcos
E sem casas
Não levarei o orvalho das ameias
Não levarei o pulso das ramadas
Da tua voz
Levarei os sítios das mimosas
Apenas os sítios das mimosas
As pedras
As nuvens
O teu canto
Levarei manhãs
E madrugadas

Daniel Faria, Poesia,
Quasi


[Poema recolhido aqui.]

quarta-feira, janeiro 14, 2004

as mimosas #1*



Devido a obras numa parte do percurso que faço para a escola, ontem e hoje tive de percorrer outro caminho, parte dele de outros tempos, de outra escola. Mas não foi esta revisitação que ontem me surpreendeu. Foram as mimosas em explosão amarela, nas bermas da serra, a dizerem-me que os dias estavam a crescer.

terça-feira, janeiro 13, 2004

imagias #10


Andrew Wyeth, Wind from the Sea, 1947


Vem um vento do mar

e a melancolia dança pelos pedaços das cortinas
onde quase-anjos prendem os véus do tempo

Vem um vento do mar

e a solidão interrompe-se nos poros da madeira enegrecida
e nos trilhos que espreitam a janela desde a água

Vem um vento do mar

e há um respirar de espera nas rugas da casa que não se vê

Sandra Costa, Sob a luz do mar,
Campo das Letras, 2002.


........................

Porque recordei aqui o quadro que deu origem a esta 'velha' imagia.

resposta a respostas*

As aves partiram
e a idade da ilha aproximou-se,
de repente, da idade do silêncio:
tudo era longe na claridade
e adiados os dedos envelheciam.

Contra o infortúnio do azul
nos cabelos dela ficou apenas
a desordem da distância
ou o vento
para acalmar tempestades.

(diz-me, tu que partiste, onde pouso os pés
se em mim já não há regressos?)

Sandra Costa

alter eros #1



António Ramos Rosa



Poema #11*

Vi-lhe os flancos delicados
como se tocasse o nome
de um navio.
Eram sílabas talvez de um verso puro
ou a dócil matéria
firme
de uma ilha adolescente.

Entre um círculo de ramos
vi-lhe a tímida luz do rosto
e as duas pequenas luas dos seus seios
que estavam vivos e novos
no eléctrico pudor do seu desejo.

Vi-lhe tremer os lábios
como se quisesse suster a iminência
de um gesto eloquente
e ser apenas o murmúrio de uma folha
contra as cálidas palavras
que eu corria o risco de dizer.

António Ramos Rosa, Os Volúveis Diademas,
Editora Ausência, 2002


* Ainda que prefira o poema #25.

eros #1

matisse18.jpg
Matisse



Se me procuras no ventre
de imediato renasce a noite mais densa,
pequenos deuses afloram-me sobre os lábios
ou sobre os flancos e as pálpebras cedem
em partículas húmidas de silêncio.


Sandra Costa

segunda-feira, janeiro 12, 2004

às segundas*



a partir de hoje, haverá um claustro por dentro e folhas a transbordar de amores e desamores mal resolvidos.

hoje foi dia de recomeços*

Debaixo das árvores do jardim da Cordoaria

(troncos largos como o mundo
cobertos de musgo)

faço um pacto com a chuva: dou-me
e a água lava-me os olhos.

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