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sábado, maio 15, 2004

-§-*

não olhes agora. está um bicho bem no alto da tua cabeça. fica quieta. não te mexas. vou tirar isso daí. que coisa nojenta. cala-te. não. não vai entrar pela blusa. também não se vai meter dentro do ouvido. não te vai picar sequer. não tem aspecto de bicho que pica. mas pára de tremer. pára com esse gemidinho angustiado. enervas-me. assim não consigo.

francamente. não sei para que foi esse espectáculo todo. tanto grito. tanto salto. eu teria arrancado essa porcaria daí. não, não sei que bicho era. não, não posso garantir que não iria fazer mal. está bem. resolveste como pudeste. está bem. como queiras. o pânico tão aceitável quanto a palmada que hesita em enxotar. sabes que continuas a ter um bicho esquisito no alto da cabeça, não sabes?


sexta-feira, maio 14, 2004

fly me to the moon #9


Man With A Movie Camera

The Cinematic Orchestra tem-me acompanhado ao deitar e ao acordar nestes últimos dois ou três dias. É esta a mais adequada banda sonora para este mês.


quarta-feira, maio 12, 2004

... do lado de cá da chuva...*

XXVIII

dizer que o avião atravessou
a minha janela como
se viesse direito ao coração,
um risco secante a esta música,
é pouco.
não chega perder os olhos
num lago de gaivotas
nem ler as árvores
de fio a pavio
porque resta sempre o sabor de
ter perdido o barco

Assim modelo as palavras
e os dedos limpo
do barro com a boca

Fica a terra mais pequena.



Ângela Marques, Confissões Dispersas, Editorial 100, 2004


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não tenho como agradecer à ângela o gesto. gosto de livros, mas gosto ainda mais quando nos trazem o afecto lá da lonjura. aceitar apenas e deixar ficar o sorriso.

"Por detrás da noite"*

Hoje também eu existo. Sou um fumador de cigarros, um que bebe mais café do que seria sensato, que olha para a paisagem como se não estivesse aqui mas um pouco mais longe, num lugar desconhecido, um para quem o amor permanecerá a palavra indecifrável. Debaixo da sombra escura do cipestre sou um animal de camisa aos quadrados, um que esqueceu que só uma esperança nos permite renascer, que aceita relutantemente receber em si a vida que passa, que esqueceu a promessa que ela encerra e que, como tal, deve ser cumprida. Antes de saber é preciso acreditar. Hoje não tenho forças para tanto. Assim, também eu hoje existo, e os que me olham ferem-me julgando ver o que quer que seja. Um indivíduo parado debaixo da sombra de um cipestre, um cigarro apagado na mão, na expectativa de algo que não chega nunca.

Pedro Paixão, Quase gosto da vida que tenho, Quetzal, 2004


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foi este, afinal, o livro que comprei no convento visitado este domingo (importa notar que a livraria associada ao evento é a fonte das letras, abençoada gente). quanto ao pedro paixão, enfim, não lhe resisto à escrita, ao tom. porque me sei colada na carne uma profunda e inexpugnável tristeza, porque, vivendo contrafeita, arrasto os pés nos dias como quem deixa cair o braço, a mão que segura um cigarro apagado.

terça-feira, maio 11, 2004

parabéns à menina litle black spot*

se afinal nos cabelos de Penélope o sol brilhava
se o próprio mar da Ítaca partilhava o sal das suas lágrimas
então talvez seja possível começar a perdoar Ulisses
— aquele que de coração magoado
não aprendera ainda a regressar
.


R. C.

continuando o elogio da dispersão*

Poema solar

Face leonina em suspenso
Transbordando no centro
De um céu desocupado,
Como estás imóvel
E como, sem amparo,
Flor solitária e sem caule,
Serves libações sem recompensa.

O olhar vê-te
Simplificado pela distância
Como uma origem,
A tua cabeça em pétalas de chamas
Explodindo sem cessar.
O calor é o eco do teu
Ouro.

Cunhado no plano
Dos solitários do horizonte,
Existes abertamente.
Hora a hora, as nossas carências
Ascendem e regressam como anjos.
Descerrando como uma mão,
Tu dás para sempre.


Philip Larkin, Janelas Altas, Cotovia, 2004,
Introd. e Trad. de Rui Carvalho Homem.

elogio da dispersão ouvindo Keith Jarrett no Koln Concert*

Reparo como o pó se acumula no canto
da janela – em tudo semelhante à coagulação
do sangue se abres a ferida, de novo disperso
se lhe sopras com algo mais do que o silêncio.

Sandra Costa

segunda-feira, maio 10, 2004

sobressaltos*

As túlipas são demasiado sensíveis; é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama, nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.


[...]

Sylvia Plath, Pela àgua, Assírio & Alvim, 2000.

fuga da morte*

No passado Sábado as cinco meninas da Turma 12.º E da Escola Secundária de Vilela (a Ana Leal, a Fábia Bessa, a Juliana Nunes, a Sandra Alves e a Sara Dias) voltaram ao palco - desta feita, mesmo a um palco, na Casa da Cultura de Paredes - e, durante uma hora, conseguiram dar a volta às últimas filas da plateia que teimavam em não respeitar as sucessivas mudanças de cena que a peça exigia. Quando terminou a última cena - o "Fuga da Morte" de Célan dito como se não fossem corpos a dizê-lo - o silêncio prolongou-se para além das últimas palavras.


FUGA DA MORTE [TODESFUGE]

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete

escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados

Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes

E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith

in Paul Celan, Sete Rosas mais tarde: Antologia Poética
(sel., trad. e introd. de João Barrento e Y. K. Centeno),
Lisboa, Edições Cotovia, 1996.

domingo no convento*



américo rodrigues com os seus poemas sonoros foi a inesperada, mas agradável, surpresa. na verdade, ía ao convento pelos livros, não sabia da performance. até porque suspeito sempre de "instalações" e de "performances", claro que de arte percebo pouco e nas instalações e performances uma pessoa que percebe pouco de arte arrisca-se a gostar do que não é de gostar ou vice-versa, está-se mais desprotegido.
mas mais surpresas, pensei que iria ver duas claras, afinal, apenas uma, engano meu por certo. o zé eduardo (agualusa) contou histórias, a clarinha (pinto correia) cantou e ondi (ondjaki) assobiou. falaram um pouquinho dos livros, a clarinha voltou a cantar, mas agora em islandês, o ondi voltou a assobiar, o zé disse mais umas piadas, por fim cantámos todos. pelo meio comi uma enxovalhada de chorar por mais.
aqui há uns anos nada me entusiasmava em montemor, era só aquela terrinha por onde passava no regresso a évora. depois, um dia, um senhor chamado rui horta instalou-se por lá.

(comprei um livro, mas penitencio-me, nem da clarinha, nem do zé, nem sequer do ondi, a seu tempo.)

notas finais para acabar de arruinar o post:
saíamos da sala onde o américo gritara sussurrara suspirara inspirara expirara regorgitara vogais consoantes e coisas que não cabem em alfabéticos fonéticos que eu conheça, dizia, saíamos para o piso superior dos claustros. suponho que tinha qualquer coisa a ver com a luz da tarde em declínio, a luz é sempre determinante, a clara em afectação sentada no muro e a meu lado dizia-se "dá vontade de chegar e pedir se se pode ficar ali um bocadinho a admirá-la, não dá?", caramba, como dava. "importa-se que me sente aqui um bocadinho só a olhá-la?, fico quietinha, prometo.", sempre quis dizer isto a alguém.
não conhecia o ondjaki, mas assim que o vi entrar percebi que era ele, as tranças os óculos, um certo balanço no andar. um miúdo, mais novo que eu, imagine-se, bonito, muito giro mesmo, contador de histórias com sorrisos. pena que não o vi debaixo de uma luz das sete horas, sentado num muro, a pensar na morte da bezerra.
o agualusa trazia um casaco preto que lhe assentava muito bem (já antes reparei como lhe assenta bem a roupa, pergunto-me se a fará por medida, se terá um velho alfaiates daqueles já não há), o agualusa tem uma pronúncia deliciosa que assenta nas palavras como a roupa assenta nele. estou certa que derreteria se o tivesse visto. debaixo de uma luz natural, sentado num muro de pedra, pensando palavras pronunciadas como ele pronuncia.

domingo, maio 09, 2004

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