sábado, março 20, 2004
imagias #18
Georges Braque
BRAQUE
Olha o Georges
diziam os colegas
a andar de bicicleta
Mas isso era muitos anos depois
e na infância não se sabia como
embora estivesse em relevo essa figura
entre peixe e cavalo.
Georges passava tranquilamente
de uma sala para um quarto
de cabelos eriçados
enquanto as flores e os frutos
se multiplicavam
na madrugada
Mas Georges não sabia nada disso
um prato de legumes lhe bastava
Havia uma grande e silencioso alegria
uma palpável tranquilidade
na casa onde o Verão caíra
sem que ninguém se desse conta.
Mas Georges ainda nada sabia
de jarras e de janelas
Limitava-se a deixar que até ele
chegassem silhuetas de animais
que sobre as suas mãos de criança
deixariam talvez mistérios de outrora.
Georges sabia, afinal, o necessário
para traçar a unidade da luz
ângulos
e maravilhas abandonadas.
Nicolau Saião
Georges Braque
BRAQUE
Olha o Georges
diziam os colegas
a andar de bicicleta
Mas isso era muitos anos depois
e na infância não se sabia como
embora estivesse em relevo essa figura
entre peixe e cavalo.
Georges passava tranquilamente
de uma sala para um quarto
de cabelos eriçados
enquanto as flores e os frutos
se multiplicavam
na madrugada
Mas Georges não sabia nada disso
um prato de legumes lhe bastava
Havia uma grande e silencioso alegria
uma palpável tranquilidade
na casa onde o Verão caíra
sem que ninguém se desse conta.
Mas Georges ainda nada sabia
de jarras e de janelas
Limitava-se a deixar que até ele
chegassem silhuetas de animais
que sobre as suas mãos de criança
deixariam talvez mistérios de outrora.
Georges sabia, afinal, o necessário
para traçar a unidade da luz
ângulos
e maravilhas abandonadas.
Nicolau Saião
sexta-feira, março 19, 2004
dualidades mínimas #40
um ruído como estática como
quase nada para o silêncio
os ouvidos surdos da ausência
cláudia caetano
um ruído como estática como
quase nada para o silêncio
os ouvidos surdos da ausência
cláudia caetano
quarta-feira, março 17, 2004
não era para ficar a tocar mas já agora...*
boa noite!
boa noite!
imagias #17
Pedro Augusto, de Trajecto 3
é ainda o tempo na sua imobilidade
os ossos no seu medo
são as ruas como cabos promontórios
ventosos onde um passo
ou um susto
celebram a queda
cláudia caetano
Pedro Augusto, de Trajecto 3
é ainda o tempo na sua imobilidade
os ossos no seu medo
são as ruas como cabos promontórios
ventosos onde um passo
ou um susto
celebram a queda
cláudia caetano
imagias #16
João Leitão, de Trajecto1
enrolas o tempo como um poço
como uma escada que não leva à torre
como um medo que passa pelos ossos
e enreda o sangue fraco de plaquetas
onde as feridas não ganham crosta
cláudia caetano
João Leitão, de Trajecto1
enrolas o tempo como um poço
como uma escada que não leva à torre
como um medo que passa pelos ossos
e enreda o sangue fraco de plaquetas
onde as feridas não ganham crosta
cláudia caetano
caminhos, rumos, trilhos, passos, chão, a distância aqui...*
Trajectos
... porque hoje me apeteceu dizer-vos do que também se passa em évora...
Trajectos
... porque hoje me apeteceu dizer-vos do que também se passa em évora...
terça-feira, março 16, 2004
C'era un angelo coi baffi*
Tonino Guerra faz, hoje, 84 anos. Comemora-se aqui, e aqui e saúda-se aqui. Sem o saber, quando já tudo estava terminado, também hoje o comemorei: andei a apanhar flores de cerejeira sem que me vissem abandonar o corpo (terminei O Mel, Cristina).
Tonino Guerra faz, hoje, 84 anos. Comemora-se aqui, e aqui e saúda-se aqui. Sem o saber, quando já tudo estava terminado, também hoje o comemorei: andei a apanhar flores de cerejeira sem que me vissem abandonar o corpo (terminei O Mel, Cristina).
e aquele grande círculo branco*
Casida de la rosa
La rosa
no buscaba la aurora:
Casi eterna en su ramo
buscaba otra cosa.
La rosa
no buscaba ni ciencia ni sombra:
Confín de carne y sueño
buscaba otra cosa.
La rosa
no buscaba la rosa:
Inmóvil por el cielo
¡buscaba otra cosa!
Federico García Lorca
Ese general
-Aquí está el general.
¿Qué quiere el general?
-Una espada desea el general.
-Ya no existen espadas, general.
¿Qué quiere el general?
Un caballo desea el general.
-Ya no existen caballos, general.
¿Qué quiere el general?
-Otra batalla quiere el general.
-Ya no existen batallas, general.
¿Qué quiere el general?
-Una amante desea el general.
-Ya no existen amantes, general-
¿Qué quiere el general?
-Un gran tonel de vino desea el general.
-Ya no hay tonel ni vino, general.
¿Qué quiere el general?
-Un buen trozo de carne desea el general.
-Ya no existen ganados, general.
¿Qué quiere el general?
-Comer yerbas desea el general.
-Ya no existen los pastos, general.
¿Qué quiere el general?
-Beber agua desea el general.
-Ya no existe más agua, general.
¿Qué quiere el general?
-Dormir en una cama desea el general.
-Ya no hay cama ni sueño, general.
¿Qué quiere el general?
-Perderse por la tierra desea el general.
-Ya no existe la tierra, general.
¿Qué quiere el general?
-Morirse como un perro desea el general.
-Ya no existen los perros, general.
¿Qué quiere el general?
¿Qué quiere el general?
Parece que está mudo el general.
Parece que no existe el general.
Parece que se ha muerto el general,
que ya, ni como un perro, se ha muerto el general,
que el mundo destruido, ya sin el general.
Va a empezar nuevamente, sin ese general.
Rafael Alberti
________________________
Luis Cernuda, Federico García Lorca, Rafael Alberti. Talvez mais alguém. A voz do poeta, o canto, a voz de outro poeta, a música. Andres Segovia e Bach. Talvez mais alguém. E aquele grande círculo branco, ali, onde fica o mar.
16 de Março 2004 | ALC, Antena 2.
Casida de la rosa
La rosa
no buscaba la aurora:
Casi eterna en su ramo
buscaba otra cosa.
La rosa
no buscaba ni ciencia ni sombra:
Confín de carne y sueño
buscaba otra cosa.
La rosa
no buscaba la rosa:
Inmóvil por el cielo
¡buscaba otra cosa!
Federico García Lorca
Ese general
-Aquí está el general.
¿Qué quiere el general?
-Una espada desea el general.
-Ya no existen espadas, general.
¿Qué quiere el general?
Un caballo desea el general.
-Ya no existen caballos, general.
¿Qué quiere el general?
-Otra batalla quiere el general.
-Ya no existen batallas, general.
¿Qué quiere el general?
-Una amante desea el general.
-Ya no existen amantes, general-
¿Qué quiere el general?
-Un gran tonel de vino desea el general.
-Ya no hay tonel ni vino, general.
¿Qué quiere el general?
-Un buen trozo de carne desea el general.
-Ya no existen ganados, general.
¿Qué quiere el general?
-Comer yerbas desea el general.
-Ya no existen los pastos, general.
¿Qué quiere el general?
-Beber agua desea el general.
-Ya no existe más agua, general.
¿Qué quiere el general?
-Dormir en una cama desea el general.
-Ya no hay cama ni sueño, general.
¿Qué quiere el general?
-Perderse por la tierra desea el general.
-Ya no existe la tierra, general.
¿Qué quiere el general?
-Morirse como un perro desea el general.
-Ya no existen los perros, general.
¿Qué quiere el general?
¿Qué quiere el general?
Parece que está mudo el general.
Parece que no existe el general.
Parece que se ha muerto el general,
que ya, ni como un perro, se ha muerto el general,
que el mundo destruido, ya sin el general.
Va a empezar nuevamente, sin ese general.
Rafael Alberti
________________________
Luis Cernuda, Federico García Lorca, Rafael Alberti. Talvez mais alguém. A voz do poeta, o canto, a voz de outro poeta, a música. Andres Segovia e Bach. Talvez mais alguém. E aquele grande círculo branco, ali, onde fica o mar.
16 de Março 2004 | ALC, Antena 2.
segunda-feira, março 15, 2004
levar dentro para amanhã*
[...]Mas o que importa, neste poema,
é o susto com que chegamos às palavras
que não temos.
Manuel de Freitas, Béau Séjour,
Assírio Alvim, 2003.
[...]Mas o que importa, neste poema,
é o susto com que chegamos às palavras
que não temos.
Manuel de Freitas, Béau Séjour,
Assírio Alvim, 2003.
restos de uma manhã na escola, ao contrário do que é habitual às segundas*
valter hugo mãe, assim mesmo, sem maiúsculas, esteve hoje na minha escola e eu, que quase não lhe conheço a escrita, fui ouvi-lo, mesmo em segunda de Arquivo até porque amanhã é terça. valter hugo mãe porque num almoço com amigos um anjo (quase) lhe soprou ao ouvido o "mãe" e isso era infazível e ele quis fazê-lo; ele, poeta "claro-escuro", de estados duais, dos poemas voltados um para o outro nas extremidades das páginas, como espelhos, porque cada poema nasce do poema (ou dos poemas) anterior e um livro reflecte um estado de espírito, um livro é como um lugar ou tem um fio invisível que lhe percorre as páginas como se fosse uma narrativa mas não o é. valter hugo mãe porque nenhuma letra deve erguer-se sobre as outras letras, disse-o outro poeta (ruy belo**) e ele quis deixar ao leitor essa liberdade de tornar cada ou nenhuma palavra mais importante do que as outras; ele que fica muito aflito quando um poema lhe surge a meio de reuniões inadiáveis e a única solução é conceder à poesia aquilo que se concede a uma necessidade vital e pedir licença porque o tempo urge; ele que escreve poesia porque isso lhe é algo de incontornável como ter um nariz grande ou um nariz pequeno, ainda que agora prefira certos confortos para o acto da escrita, os blocos novos e as canetas que não falhem. valter hugo mãe que se tivesse de escolher o melhor poema do mundo quase sempre escolheria um de herberto hélder; ele que disse aos miúdos que Camões é sempre actual e que nunca falha junto das meninas e que palavras como frigorífico ou internet não lhe entram nos poemas porque são demasiado efémeras e não se entendem com a eternidade. valter hugo mãe que lhe deu para escrever um livro amoroso para a adriana calcanhotto e que finalizou a palestra como uma menina sobre os telhados porque eu vou derramar nos seus planos o resto da minha alegria*. gostei do que ouvi.
ah!, esquecia-me: valter hugo mãe que também falou de blogs e que em quase todos os blogs há poesia.
* verso de Adriana Calcanhotto.
** onde se lia "talvez herberto hélder", deve ler-se (como já se lê) ruy belo. e a responsabilidade é da minha falta de memória.
valter hugo mãe, assim mesmo, sem maiúsculas, esteve hoje na minha escola e eu, que quase não lhe conheço a escrita, fui ouvi-lo, mesmo em segunda de Arquivo até porque amanhã é terça. valter hugo mãe porque num almoço com amigos um anjo (quase) lhe soprou ao ouvido o "mãe" e isso era infazível e ele quis fazê-lo; ele, poeta "claro-escuro", de estados duais, dos poemas voltados um para o outro nas extremidades das páginas, como espelhos, porque cada poema nasce do poema (ou dos poemas) anterior e um livro reflecte um estado de espírito, um livro é como um lugar ou tem um fio invisível que lhe percorre as páginas como se fosse uma narrativa mas não o é. valter hugo mãe porque nenhuma letra deve erguer-se sobre as outras letras, disse-o outro poeta (ruy belo**) e ele quis deixar ao leitor essa liberdade de tornar cada ou nenhuma palavra mais importante do que as outras; ele que fica muito aflito quando um poema lhe surge a meio de reuniões inadiáveis e a única solução é conceder à poesia aquilo que se concede a uma necessidade vital e pedir licença porque o tempo urge; ele que escreve poesia porque isso lhe é algo de incontornável como ter um nariz grande ou um nariz pequeno, ainda que agora prefira certos confortos para o acto da escrita, os blocos novos e as canetas que não falhem. valter hugo mãe que se tivesse de escolher o melhor poema do mundo quase sempre escolheria um de herberto hélder; ele que disse aos miúdos que Camões é sempre actual e que nunca falha junto das meninas e que palavras como frigorífico ou internet não lhe entram nos poemas porque são demasiado efémeras e não se entendem com a eternidade. valter hugo mãe que lhe deu para escrever um livro amoroso para a adriana calcanhotto e que finalizou a palestra como uma menina sobre os telhados porque eu vou derramar nos seus planos o resto da minha alegria*. gostei do que ouvi.
ah!, esquecia-me: valter hugo mãe que também falou de blogs e que em quase todos os blogs há poesia.
* verso de Adriana Calcanhotto.
** onde se lia "talvez herberto hélder", deve ler-se (como já se lê) ruy belo. e a responsabilidade é da minha falta de memória.
imagias #15
Giorgio Morandi, Natureza Morta, 1956
Ondas de sangue adormecem
solitárias, nocturnas, imprecisas
As veias são assim, na tela clara
das naturezas mortas
As tuas mãos, pausadamente
contam o tempo
da gestação dos frutos
e desvendam-nos coisas nos sentidos
Uma aqui, outra ali
E depois nós olhamos
a árvore, a catedral, o rio imóvel
O copo e a maçã erguem melhor
o firmamento, a luz sobre as cadeiras
- são o retrato
das diferentes imagens invisíveis
animais, vegetais e minerais
Um ruído lá fora
Um pequeno barulho pouco a pouco desfeito.
Nicolau Saião
Giorgio Morandi, Natureza Morta, 1956
Ondas de sangue adormecem
solitárias, nocturnas, imprecisas
As veias são assim, na tela clara
das naturezas mortas
As tuas mãos, pausadamente
contam o tempo
da gestação dos frutos
e desvendam-nos coisas nos sentidos
Uma aqui, outra ali
E depois nós olhamos
a árvore, a catedral, o rio imóvel
O copo e a maçã erguem melhor
o firmamento, a luz sobre as cadeiras
- são o retrato
das diferentes imagens invisíveis
animais, vegetais e minerais
Um ruído lá fora
Um pequeno barulho pouco a pouco desfeito.
Nicolau Saião
domingo, março 14, 2004
.*
Um dia não muito longe não muito perto*, tudo vai terminar assim. O ar que respiro não fará mais sentido: as palavras vão cair ao chão como frutos fatigados e, também como previsto, não se levantará poeira ainda que a terra esteja seca porque durante mais de mil anos foi de sede que padeci. Alguém se lembrará de me fazer respiração boca-a-boca, para que os pulmões não me sucumbam na árdua tarefa de ampararem o coração, mas o ar circulará como entrou, tão frio e puro como os meus lábios entreabertos: ninguém confunde pedras com o silêncio ou a respiração assistida** com um beijo. Um dia não muito longe não muito perto, ficar-me-ão só os gestos e as sombras e morrerei de realidade.
* verso de Ruy Belo.
** recordando Fernando Assis Pacheco.
Um dia não muito longe não muito perto*, tudo vai terminar assim. O ar que respiro não fará mais sentido: as palavras vão cair ao chão como frutos fatigados e, também como previsto, não se levantará poeira ainda que a terra esteja seca porque durante mais de mil anos foi de sede que padeci. Alguém se lembrará de me fazer respiração boca-a-boca, para que os pulmões não me sucumbam na árdua tarefa de ampararem o coração, mas o ar circulará como entrou, tão frio e puro como os meus lábios entreabertos: ninguém confunde pedras com o silêncio ou a respiração assistida** com um beijo. Um dia não muito longe não muito perto, ficar-me-ão só os gestos e as sombras e morrerei de realidade.
* verso de Ruy Belo.
** recordando Fernando Assis Pacheco.
Para o Francisco José Viegas*
A noite, o que é?, 45. O que sobrevive ao desespero. Vestígios de rostos que finalmente se abeiram do lugar das sombras e morrem um pouco menos, por cada luz que se apaga dentro do sono. E um possível verso – dói-me o silêncio como tua voz – onde encostamos a face, à procura da ausência, evitando a espessura da mágoa. E os ramos das árvores, ainda nus, tão perto dos vidros da janela.
A noite, o que é?, 45. O que sobrevive ao desespero. Vestígios de rostos que finalmente se abeiram do lugar das sombras e morrem um pouco menos, por cada luz que se apaga dentro do sono. E um possível verso – dói-me o silêncio como tua voz – onde encostamos a face, à procura da ausência, evitando a espessura da mágoa. E os ramos das árvores, ainda nus, tão perto dos vidros da janela.