sábado, março 27, 2004
..*
O normativo verde
Tão verdes e sensatas
estas folhas,
tão conformadas com a primavera,
tão de dentro do tom
que as mais obriga
Se fosse cor de Agosto
ou cor de rosa,
se um golpe de amnésia
as tornasse esquecidas
da lei da clorofila
Se a lua em vez do sol
em troca delicada,
a forma hexagonal
e desviada
e uma pupila ardendo,
deslizante
Se o sol lhes fosse
hipótese distante
e nunca o mais real,
a luz a baixo preço,
em saldo ou em cordel
por universo,
ou nada -
Ser-se-iam decerto
mais atentas,
mais reparantes dos pequenos
brilhos
E voariam (claro) junto à lua:
avessas borboletas
nuas
- e secretas
Ana Luísa Amaral, "Quatro Poemas Inéditos" in UPORTO, N.º 11, Revista dos Antigos Alunos da Universidade do Porto,
Universidade do Porto, 2004.
O normativo verde
Tão verdes e sensatas
estas folhas,
tão conformadas com a primavera,
tão de dentro do tom
que as mais obriga
Se fosse cor de Agosto
ou cor de rosa,
se um golpe de amnésia
as tornasse esquecidas
da lei da clorofila
Se a lua em vez do sol
em troca delicada,
a forma hexagonal
e desviada
e uma pupila ardendo,
deslizante
Se o sol lhes fosse
hipótese distante
e nunca o mais real,
a luz a baixo preço,
em saldo ou em cordel
por universo,
ou nada -
Ser-se-iam decerto
mais atentas,
mais reparantes dos pequenos
brilhos
E voariam (claro) junto à lua:
avessas borboletas
nuas
- e secretas
Ana Luísa Amaral, "Quatro Poemas Inéditos" in UPORTO, N.º 11, Revista dos Antigos Alunos da Universidade do Porto,
Universidade do Porto, 2004.
quinta-feira, março 25, 2004
.*
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
em negação poética
alter eros #4
Carlos Martins
Ela corria pela ravina
quand’eu lhe gritei:
desce, amor, sou eu.
Ela me perguntou:
o que me trazes,
o que me ofereces?
Trago no meu corpo
o perfume da terra áspera,
o cheiro da terra
na primeira neblina,
para ti eu trago.
Nos meus olhos,
o fruto amanhecente
numa aurora de ouro,
às tuas narinas,
eu trago o fruto.
Trago também, só para ti eu trago
o furor da tempestade,
o tremor do vento do deserto,
que de dia é quente,
que de noite é frio,
e aos teus cabelos não negarei
o arrepio
nem o mergulho,
não negarei...
E na ponta dos meus dedos
um dedilhar suave,
uns tons de sol,
uns tons de lua:
esquadrinharei todo o teu rosto,
pétala a pétala,
numa manhã de rosa.
— Agora vem! Desce, amor!
Foi quand’ela saltou,
desequilibrou-se, nem sei,
do despenhadeiro abaixo,
e suavemente, pela cintura,
nos pousámos
nas touceiras azuis
dos manjericões de cheiro.
Soares Feitosa*
Salvador, Baía, noite leve, 31.10.1995
* Escritor brasileiro (1944 – Ipu, Ceará), também editor e jornalista. Foi o criador e é o director do Jornal de Poesia, uma das mais importantes publicações interactivas da América do Sul. Autor da colectânea “Psi, a penúltima”. “Divide hoje residência entre as três grandes capitais nordestinas” (sic).
enviado por Nicolau Saião
Carlos Martins
Ela corria pela ravina
quand’eu lhe gritei:
desce, amor, sou eu.
Ela me perguntou:
o que me trazes,
o que me ofereces?
Trago no meu corpo
o perfume da terra áspera,
o cheiro da terra
na primeira neblina,
para ti eu trago.
Nos meus olhos,
o fruto amanhecente
numa aurora de ouro,
às tuas narinas,
eu trago o fruto.
Trago também, só para ti eu trago
o furor da tempestade,
o tremor do vento do deserto,
que de dia é quente,
que de noite é frio,
e aos teus cabelos não negarei
o arrepio
nem o mergulho,
não negarei...
E na ponta dos meus dedos
um dedilhar suave,
uns tons de sol,
uns tons de lua:
esquadrinharei todo o teu rosto,
pétala a pétala,
numa manhã de rosa.
— Agora vem! Desce, amor!
Foi quand’ela saltou,
desequilibrou-se, nem sei,
do despenhadeiro abaixo,
e suavemente, pela cintura,
nos pousámos
nas touceiras azuis
dos manjericões de cheiro.
Soares Feitosa*
Salvador, Baía, noite leve, 31.10.1995
* Escritor brasileiro (1944 – Ipu, Ceará), também editor e jornalista. Foi o criador e é o director do Jornal de Poesia, uma das mais importantes publicações interactivas da América do Sul. Autor da colectânea “Psi, a penúltima”. “Divide hoje residência entre as três grandes capitais nordestinas” (sic).
enviado por Nicolau Saião
verdades*
De cada vez que baralho recordações dou com aquela mulher /
nas orelhas cresciam-lhe flores para não ouvir os ruídos da dor/
de perfil parecia o oceano atlântico às 6 da tarde /
do outro lado era a minha tia à conversa com o seu outono /
dos seus olhos belíssimos descia às vezes um cavalo
que recitava comédias / a comédia do abandono (para esta punha quatro violetas na cauda) /
a comédia do encontro (saía-lhe um coelhinho do sul)
a comédia do espírito chuvoso ainda que pianístico / mas
o mais assombroso era vê-la na comédia do amor /
o seu coração suava como um estivador de puerto nuevo na carga e descarga de um barco russo /
ao mesmo tempo os olhos punham-se-lhe brancos como um esquimó /
a sua voz subia e descia as escadas do castelo de northumberland / bêbeda
como o meu pai e outros exemplares da minha delicada família /
[...]
como aquela mulher misturava a geografia /
tinha estudado numa escola oficial /
e assim em vez de suspirar / abanava
a cama cantando a marcha de são lourenço /
«nasce febo» cantava ela com uma espada na voz / enxugando a comédia de ontem /
«eis seus raios» cantava levantando a mesa / pondo os pratos no lava-loiça de amanhã
«e a coz do grande chefe» cantava na cozinha / apanhando
migalhinhas da conversa amorosa caída na toalha / ou
apagando de súbito a noite / as consequências da noite /
com a sua ternura infantil / pateta de todo /
quando discutia política era linda como a marilyn monroe /
na sua boca a revolução latino-americana parecia um quadro de rousseau /
havia sempre uma selva / um tigre ou uma leoa / uma lua cor-de-rosa
(não de róseos dedos) mistérios vegetais e animais / e
um par de pernas azuis que voavam como ela
quando o seu sorriso perfeito tinha cãibras antigas como em menina / isto é /
de quando era pequena e olhava para as paredes do mundo /
e pelo seu olhar passava a pé um burrico debaixo de sol /
e ela desembarcava às 6 da tarde com uma aldeia de outonos /
e assim começava a doçura /
Juan Gelman, No Avesso do Mundo, Col. Poetas em Mateus,
Quetzal Ed., 1998, Tradução Colectiva, revista por Ana Luísa Amaral.
De cada vez que baralho recordações dou com aquela mulher /
nas orelhas cresciam-lhe flores para não ouvir os ruídos da dor/
de perfil parecia o oceano atlântico às 6 da tarde /
do outro lado era a minha tia à conversa com o seu outono /
dos seus olhos belíssimos descia às vezes um cavalo
que recitava comédias / a comédia do abandono (para esta punha quatro violetas na cauda) /
a comédia do encontro (saía-lhe um coelhinho do sul)
a comédia do espírito chuvoso ainda que pianístico / mas
o mais assombroso era vê-la na comédia do amor /
o seu coração suava como um estivador de puerto nuevo na carga e descarga de um barco russo /
ao mesmo tempo os olhos punham-se-lhe brancos como um esquimó /
a sua voz subia e descia as escadas do castelo de northumberland / bêbeda
como o meu pai e outros exemplares da minha delicada família /
[...]
como aquela mulher misturava a geografia /
tinha estudado numa escola oficial /
e assim em vez de suspirar / abanava
a cama cantando a marcha de são lourenço /
«nasce febo» cantava ela com uma espada na voz / enxugando a comédia de ontem /
«eis seus raios» cantava levantando a mesa / pondo os pratos no lava-loiça de amanhã
«e a coz do grande chefe» cantava na cozinha / apanhando
migalhinhas da conversa amorosa caída na toalha / ou
apagando de súbito a noite / as consequências da noite /
com a sua ternura infantil / pateta de todo /
quando discutia política era linda como a marilyn monroe /
na sua boca a revolução latino-americana parecia um quadro de rousseau /
havia sempre uma selva / um tigre ou uma leoa / uma lua cor-de-rosa
(não de róseos dedos) mistérios vegetais e animais / e
um par de pernas azuis que voavam como ela
quando o seu sorriso perfeito tinha cãibras antigas como em menina / isto é /
de quando era pequena e olhava para as paredes do mundo /
e pelo seu olhar passava a pé um burrico debaixo de sol /
e ela desembarcava às 6 da tarde com uma aldeia de outonos /
e assim começava a doçura /
Juan Gelman, No Avesso do Mundo, Col. Poetas em Mateus,
Quetzal Ed., 1998, Tradução Colectiva, revista por Ana Luísa Amaral.
o ofício de viver*
1950| 25 de Março
Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.
1950| 25 de Março
Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.
quarta-feira, março 24, 2004
|0<|*
chora o mal e o medo todo. o desgosto entornado na lágrima, no ranho, no cuspo— digo, chora baba e ranho. o desgosto refeito na dor a passo renovada. com ou sem véus negros, com ou sem lenços brancos encharcados. com ou sem a visita a cada quinze dias. com ou sem filho morto— às vezes, parece que as mulheres todas choram crias perdidas. com ou sem dentes rangendo na placa mal ajustada na boca ferindo as gengivas, ou não. chora as mãos que perderam o rasto, o rosto, o rasto do rosto e que, hoje, se cobrem alguma coisa, é a incerteza de algo ainda belo— tantos os perigos da beleza na representação da dor. com ou sem grito abafado— cada mulher carregando um enlutado ai de parto.
chora e descansa. deixa estar que é só terra, deixa estar que é só mais a cal. descansa.
cláudia caetano
chora o mal e o medo todo. o desgosto entornado na lágrima, no ranho, no cuspo— digo, chora baba e ranho. o desgosto refeito na dor a passo renovada. com ou sem véus negros, com ou sem lenços brancos encharcados. com ou sem a visita a cada quinze dias. com ou sem filho morto— às vezes, parece que as mulheres todas choram crias perdidas. com ou sem dentes rangendo na placa mal ajustada na boca ferindo as gengivas, ou não. chora as mãos que perderam o rasto, o rosto, o rasto do rosto e que, hoje, se cobrem alguma coisa, é a incerteza de algo ainda belo— tantos os perigos da beleza na representação da dor. com ou sem grito abafado— cada mulher carregando um enlutado ai de parto.
chora e descansa. deixa estar que é só terra, deixa estar que é só mais a cal. descansa.
cláudia caetano
segunda-feira, março 22, 2004
'|'|'|'*
depois é a voz quase sussurrada. o empregado do café a pedir que repita e um esforço tão grande para repetir, em bicos de pés, como se fossem os calcanhares ligados à terra que segurassem a voz. a garganta que não está preparada e as palavras a sairem arranhadas e fora de tom. são os espaços mais apertados no meio dos estranhos. se tenho comichão nas costas, é o meu cotovelo na barriga do senhor. são as pressas que não tenho. caminhar de olhos no chão, sem dar conta do chão. é tropeçar, apesar dos olhos no chão. são compromissos com um futuro desastre, são mentiras para passar o tempo.
cláudia caetano
depois é a voz quase sussurrada. o empregado do café a pedir que repita e um esforço tão grande para repetir, em bicos de pés, como se fossem os calcanhares ligados à terra que segurassem a voz. a garganta que não está preparada e as palavras a sairem arranhadas e fora de tom. são os espaços mais apertados no meio dos estranhos. se tenho comichão nas costas, é o meu cotovelo na barriga do senhor. são as pressas que não tenho. caminhar de olhos no chão, sem dar conta do chão. é tropeçar, apesar dos olhos no chão. são compromissos com um futuro desastre, são mentiras para passar o tempo.
cláudia caetano
domingo, março 21, 2004
dualidades mínimas #41
a noite atravessa este medo
como uma prioridade absoluta:
absorvendo tudo o que existe
o medo como um nó apertado
como uma pioridade absoluta:
absorvendo tudo o que existe
adormeço sobre o medo
(a noite é a prioridade absoluta:
um nó absurdo sobre o que existe)
Sandra Costa
como uma prioridade absoluta:
absorvendo tudo o que existe
como uma pioridade absoluta:
absorvendo tudo o que existe
adormeço sobre o medo
(a noite é a prioridade absoluta:
um nó absurdo sobre o que existe)
Sandra Costa
outras dualidades*
Reparo nas tuas mãos profundas de violência
em contraste com as superfícies frias dos teus versos
lembro os dias lúcidos da sabedoria e a penumbra
o assombro depois dos silêncios mais tardios
Reparo no som das ondas quando chegam às rochas
em como as palavras não evitam a paisagem
ao desfazerem-se em dispersão líquida
(se me atingem os lábios os hábitos do desassossego)
Reparo no sono dourado dos que passam de noite
e na distância intacta que levamos entre os quatro pés
porque se repetem fluidos pela calçada os nomes
das estátuas e das flores que matas pela primavera
Durmo devagar nos terrenos da solidão repetida
mas adivinhas gumes e medos como na primeira vez
Rui Almeida e Sandra Costa
Reparo nas tuas mãos profundas de violência
em contraste com as superfícies frias dos teus versos
lembro os dias lúcidos da sabedoria e a penumbra
o assombro depois dos silêncios mais tardios
Reparo no som das ondas quando chegam às rochas
em como as palavras não evitam a paisagem
ao desfazerem-se em dispersão líquida
(se me atingem os lábios os hábitos do desassossego)
Reparo no sono dourado dos que passam de noite
e na distância intacta que levamos entre os quatro pés
porque se repetem fluidos pela calçada os nomes
das estátuas e das flores que matas pela primavera
Durmo devagar nos terrenos da solidão repetida
mas adivinhas gumes e medos como na primeira vez
Rui Almeida e Sandra Costa
Despedida da paisagem*
Não quero mal à Primavera
por ela aí estar de novo.
Não a culpo por,
como em cada ano,
cumprir as suas obrigações.
Compreendo que a minha tristeza
não detém a vegetação.
O cálamo se vacila
é só ao vento.
Não me causa dor
que sobre a água os tufos de amieiros
de novo tenham com que ramalhar.
Tomo em consideração
que, como se vivesses ainda,
a margem de certo lago
permaneça linda como foi.
Nada tenho contra
esta vista, à vista
da baía esplendorosa de sol.
Consigo até imaginar
que outros que não nós
se sentem neste momento
no tronco do pinheiro derrubado.
Respeito o seu direito
ao murmúrio, ao riso,
a um silêncio feliz.
Apostaria mesmo
que o amor os une
e que ele a envolve
com um braço vivo.
A passarada nova
rumoreja nos caniços.
Sinceramente lhes desejo
que a ouçam.
Não peço qualquer mudança
às ondas de junto à margem.
desenvoltas, preguiçosas,
rebeldes ao meu querer.
Nada exijo
aos fundos da água sob o bosque,
safira agora
e logo esmeralda
e logo negros.
Com uma coisa não concordo.
Em regressar lá.
Desisto dele -
do privilégio da presença.
Pois quanto baste eu Te sobrevivi,
apenas quanto baste,
para pensar com distância.
Wislawa Szymborska, Paisagem com Grão de Areia,
Relógio d'Água, 1998, Trad. de Júlio Sousa Gomes.
Não quero mal à Primavera
por ela aí estar de novo.
Não a culpo por,
como em cada ano,
cumprir as suas obrigações.
Compreendo que a minha tristeza
não detém a vegetação.
O cálamo se vacila
é só ao vento.
Não me causa dor
que sobre a água os tufos de amieiros
de novo tenham com que ramalhar.
Tomo em consideração
que, como se vivesses ainda,
a margem de certo lago
permaneça linda como foi.
Nada tenho contra
esta vista, à vista
da baía esplendorosa de sol.
Consigo até imaginar
que outros que não nós
se sentem neste momento
no tronco do pinheiro derrubado.
Respeito o seu direito
ao murmúrio, ao riso,
a um silêncio feliz.
Apostaria mesmo
que o amor os une
e que ele a envolve
com um braço vivo.
A passarada nova
rumoreja nos caniços.
Sinceramente lhes desejo
que a ouçam.
Não peço qualquer mudança
às ondas de junto à margem.
desenvoltas, preguiçosas,
rebeldes ao meu querer.
Nada exijo
aos fundos da água sob o bosque,
safira agora
e logo esmeralda
e logo negros.
Com uma coisa não concordo.
Em regressar lá.
Desisto dele -
do privilégio da presença.
Pois quanto baste eu Te sobrevivi,
apenas quanto baste,
para pensar com distância.
Wislawa Szymborska, Paisagem com Grão de Areia,
Relógio d'Água, 1998, Trad. de Júlio Sousa Gomes.