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sábado, julho 05, 2003

o que me fez prender*
e aprender no Bicho Escala Estantes:
Cesare Pavese

Virá a morte e terá os teus olhos
esta morte que nos acompanha
da manhã à  noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um ví­cio absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito emudecido, um silêncio.
Assim os vejo todas as manhãs
quando sobre ti te inclinas
ao espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
re-emergir um rosto morto,
como ouvir lábios cerrados.
Desceremos ao vértice mudo.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, tradução de Jorge de Sena

Pedro Mexia

Passa, absorto, com o fato que trouxe
da limpeza a seco,
nem ousando pensar se
a realidade também o permite.

Pedro Mexia, Eliot e Outras Observações, Gótica, 2003

Manuel de Freitas

Se me perguntassem
o que é a perfeição,
diria: acabar agora o mundo
extinto o lume ou quase lume
deste coro final como nenhum outro:
'Wir setzen uns mit Tränen nieder
Und rufen dir um Grabe zu...'
Bach, obviamente Bach.

Manuel de Freitas, Buchlein fur Johann Sebastian Bach, Assí­rio & Alvim

Vasco Gato, Imo, Quasi
José Luís Borges e Adolfo Bioy Casares, Livro do Céu e do Inferno, Teorema
Bulgakov, Margarita e o Mestre, Contexto
Jorge Sousa Braga, A Ferida Aberta, Assírio & Alvim
Ana Hatherly, Itinerários, Quasi, 2003
Seamus Heaney, Luz Eléctrica, Quasi

Carlos de Oliveira

CARTA DA INFÂNCIA

Amigo Luar:
Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
         minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
         nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
         cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
         da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Sá da Costa, 1998


Javier Marías, Negras Costas do Tempo, Bizâncio
Einar Már Gudmundsson, Anjos do Universo, Ed.Canguru, 2003.
A lista estará incompleta, poderá nem servir para nada mas deu-me gozo recensear estes apontamentos de um bicho que escala estantes.

quase um regresso*
Bicho Escala Estantes foi um dos blogs que mais me entusiasmou. Li no FUMAÇAS que Vincent tinha regressado, acompanhado ao que parece, e sem falar propriamente de estantes. Outro o Meridiano.

em destaque,*
novos links na coluna ali ao lado, pontos de passagem habituais e ainda a atrasada referência a uma ervilha, a um pano para mangas e a um blogo nos vê.

sexta-feira, julho 04, 2003

como fazer poesia?*
Há vários dias que visito o blog de David Rodrigues, um desconhecido para mim. Gosto da forma como escreve ainda que não tenha explorado exaustivamente o conjunto dos seus textos (aliás, exaustivamente não faço nada nos últimos dias) e hoje gostei ainda mais, com todas as discordâncias que senti, do seu como fazer poesia.

dualidades mínimas #7

Consentir a manhã
como se esse fosse o regresso,
o compasso necessário.

quinta-feira, julho 03, 2003

fly me to the moon #2

Paganini: After A Dream


Paganini: After A Dream
de Regina Carter foi um daqueles acasos. O tempo de espera suficiente no 'posto de escuta' da Fnac do Norteshopping para perceber na playlist um nome novo, onde o jazz e o violino surgiam juntos. Não tocava naquele momento mas, ainda à espera, com um livro de Marguerite Duras nas mãos a pedir que não o lesse, qualquer coisa me fazia ir ter com o cd. Lá me decidi e como já não havia fila no atendimento ao cliente, pedi para ouvir. E ouvi e ouvi e ouvi. Até que senti uma mão junto do pescoço a despertar-me. Acabara o tempo de espera mas after a dream não.

quarta-feira, julho 02, 2003

SenhorE*
Estamos esquecendo isto que agora
vêem os olhos. Vai indo
para um país aonde mesmo a sombra
só tem espessura de se haver esquecido.
Estamos esquecendo. Ou estão as coisas
a perder-se pelo limbo
por onde o brilho de se tornarem nossas
as faz objectos atávicos do espírito.
E, quando o esquecimento as incorpora
segundo a sua natureza, o sítio
surde matinal da sombra
para onde haviam ido.
E o seu perímetro inédito de lomba
de novo emerge. Traz um fulgor antigo.


Fernando Echevarría, Geórgicas, Edições Afrontamento, 1998

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apetecia-me comentar, mas quando leio este senhor tudo o que me ocorre é o sorriso ditado pela impressão da sintaxe (tanto que me agrada a sintaxe em echevarría), junto deste sentir (que se fosse sorriso seria ainda mais largo que o anterior) que me diz já tudo estar dito. aqui, da minha pequenez, arriscaria a dizer que echevarría se arrisca a uma poesia difícil e isso, nos tempos que correm, é d'homem. e a gente quase se perde na densidade formal (às vezes, sinto-o tão denso que quase não me deixa entrar, mas sou teimosa e furo - se calhar é apenas inépcia minha), para depois se banhar nas águas muito limpas daquilo que nos revelam, uma a uma, as palavras. falava a sandra de simplicidade, aqui há dias, e de imediato nos confrontamos com a dificuldade de entender e, pior, de formalizar o que é isso de simplicidade, como se consegue, por que meios e, até mesmo, com que fins. insisto, é tão difícil medir isso... e depois, meto os pés pelas mãos e penso que tem que ter a ver com qualquer coisa como a verdade. leio este senhor e convenço-me que ele sabe dessa verdade interior das coisas a elas e a nós intrínseca.


terça-feira, julho 01, 2003

onde queres que deixe?*

Onde queres que deixe as manhãs
que regressam dos poemas por dizer-te?

Onde queres que deixe o silêncio excessivo
das buganvílias que os dias ainda colhem
em cada varanda que não dá para o mar?

Onde queres que deixe as intactas travessias
que me inquietam os dedos e a sede,
como se houvesse um rio onde só a lua
tem nome e que só eu reconheço?

Onde queres que deixe a suave inclinação
de todas as planícies que um dia
te quis escrever?

lula pena,*
alguém sabe do segundo álbum dela? Há segundo álbum? Eu acho que não sonhei há quase um ano, mas depois houve um eclipse qualquer.

p.s. - bem me parecia que não sonhara, Profissão de Fée é o álbum. Agora, onde o encontrar?!

little*
black spot: um ponto escuro emerge da escuridão. flutua pelo ar sem que se veja. mas por todo lado a sensação de uma noite mais profunda.


concessão*
"responda que lhe agrada mesmo que esteja a mentir, nunca parou de mentir, amo-te e mentira, tive saudades tuas e mentira, também me quero casar e mentira, não ama, não teve saudades, não se quer casar, dava nós com os dedos portanto minta senhor, o que lhe custa"

António Lobo Antunes, Que Farei Quando Tudo Arde?, Dom Quixote, 2001


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começa assim, um dia oferecem-te um um pano da loiça para o enxoval (se fores menina, que nisto de prendas os rapazes sempre vão tendo mais sorte, enfim, também pode ser um par de peúgas) e sorris e agradeces. agradeces e sorris, porque a mãe disse que não toleraria de novo outro tipo de comportamento que não o da boa educação e cordialidade (era tão criança, como adivinhar que não podia dizer à senhora que a sua presença diária em nossa casa já se tornava um hábito chato?). depois, tornas-te cúmplice, sorriem-te e agradecem-te, porque as mães são todas iguais.
ou então assim, um dia queres ir jogar com um amiguinho que te convidou a ir lá a casa para brincar com jogo que o tio lhe ofereceu, mas já antes combinaras com o melhor amigo, o de sempre, ir na bicicleta de sempre ao jardim de sempre fazer as coisas de sempre. e não é que não gostes de as fazer, mas nessa altura ainda acreditas que há coisas que duram mais do que o tempo todo, que sempre lá vão estar para ti. o dilema. não queres magoar o amigo de sempre, até porque sabes que vais voltar a procurar a sua companhia quando o jogo deixar de ser novo. espera-lo no portão de mãos suadas e dizes que hoje não pode ser porque a tua mãe não deixa, porque o cão está doente, a cara cada vez mais vermelha, porque o pai pendurou a bicicleta nos ganchos da parede da garagem, onde nem eu nem tu conseguimos chegar, como daquela vez em que tentámos e eu em cima de ti e a bicicleta em cima de nós e tu com cinco pontos na testa e a minha mãe, aí­ sim, mesmo zangada e a tua dois cêntimetros abaixo e furavas o olho, onde estavas com a cabeça?, lembras-te?, hoje não posso mesmo. tentas o ar desolado e sai-te um risinho nervoso. dali a tempos será a tua vez de deixa estar, vamos amanhã, ou depois, quando puderes, reconhecendo a falta de jeito, sabendo o que isso quer dizer.
pode começar assim. e continuará sempre. porque é mais fácil.
agradeço-te que me mintas, que me poupes, é mais ou menos isto que estamos a dizer quando compreendo, obrigada. de início, porque há coisinhas pelas quais não vale a pena discutir. depois, porque há coisas para as quais não tens força para discutir.


segunda-feira, junho 30, 2003

dualidades mínimas #6

é apenas resíduo o silêncio
quando ao atiçar o fim do dia
se ouve a distância


//))*
Enviamos a Onda ao encontro da Onda –
Uma Missão tão divina,
O Mensageiro também enamorado,
Esquecendo-se de voltar,
E temos a sábia percepção ainda,
Embora feita em vão,
O momento mais sensato para deter o mar é quando o mar já partiu –


Emily Dickinson, Esta É A Minha Carta Ao Mundo e outros poemas, Assírio & Alvim, 1997
(tradução: Cecília Rego Pinheiro)


um dia tentei fazer frente a uma onda, até aí nunca tivera a justa noção das dimensões e sempre me metera em desequilibradas relações de forças, talvez ainda. é nisso que penso agora. nisso e no quase desconforto que me traz este poema, fala de mar, eu sei, mas segreda-me deserto.


domingo, junho 29, 2003

a Outro, eu*
o meu obrigada. Deixo-lhe a prenda costumeira cá do sítio, um poema. De uma poetisa que gosto muito, um poema que me faz lembrar também o Desejo Casar:

No primeiro luar de outono, alterei o penteado e risquei,
em todos os mapas do mundo, caminhos interiores.
O mais comum dos peregrinos cruzou comigo o olhar vadio,
como quem partilha a água e a sede, o pão e a raiva, a fome
e o sangue.

Num lugar de mágoas e cansaços te encontrei,
companheira de sonhos.
Gastaste as mãos nos ardis da entrega e percorreste
os trilhos da coragem, resgatando a noite.
Às vezes, murmurámos, entre nós, coisas do silêncio,
denunciadas pelo olhar e dissemos: não há mais nada
a fazer senão amar. Apesar de tudo. Apesar de nada.


Graça Pires, Reino da Lua, Editorial Escritor, 2002

Mais poemas de Graça Pires aqui, a quem interessar.

sob a luz do mar,*
não resistindo a um certo umbiguismo (não me apraz a imagem), como dizem por aí.

fundo de música?*
Chet Baker, testing.

elogio da sombra #1
Não me acho capaz de elaborar um comentário literário. Não gosto de os ler sobre e antes do livro que tenciono ler e até os prefácios deixo para o fim da leitura. Gosto que as impressões, emoções, que colho de um livro sejam quase inequivocamente minhas. Aprecio uma sugestão da pessoa certa mas a abundância de elogios diminuem o impacto e adulteram o sabor, necessariamente, e nada supera a pretensa "descoberta" de um novo livro que nos parece que mais ninguém leu. Nada de novo, isto.

O que se pretende, então, com o espaço elogio da sombra
[1]? Não comentar, não revelar, não influenciar; tão só tentar tornar dizível o silêncio, a sombra, que ficam depois de certos livros.

[1] Tí­tulo "roubado" a Jorge Luí­s Borges.

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Equador é o primeiro romance de Miguel Sousa Tavares, já toda a gente sabe. É um romance histórico que se desenvolve em anunciada latitude, ainda que o equador pretenda ser também metáfora (a descobrir), mas, ao contrário do que presumo que seja o clima dos trópicos, Equador não provoca problemas respiratórios a quem o lê; é leve o ar que nele se inala e que nos incentiva a continuar dentro da história, e da História também. No entanto, falta qualquer coisa a este livro. Digamos que é uma boa tarde de sol que não se confirma em crepúsculo, que não explode em emoção. E eu esperava isso de Miguel Sousa Tavares, depois de Não te deixarei, David Crockett.

escritores*
David Mourão-Ferreira e José Cardoso Pires, no Portugal dos Pequeninos e nos Textos de Contracapa, respectivamente. O primeiro, com aquele que eu chamo o meu poema - Ternura; o segundo através de uma excelente crónica de Nélson de Matos sobre a relação entre os editores e os seus autores.

dualidades mínimas #5

Sei que a lua nova
acende-se transparente (e imprecisa)
como o amor.

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