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sexta-feira, agosto 01, 2003

no feminino #7*

Carta

Quero que saibas que
não acredito na perenidade das Primaveras
na eterna permanência do aroma do jasmim
no irresistível encanto amarelo do girassol
no mais precioso tesouro guardado na intimidade das prímulas
na certeza completa do arco-íris
no fascínio que o mar tem por nós quando a luz cai oblíqua,

quero que saibas que não acredito em nada disto
e em histórias de amor com finais felizes muito menos,
que se continuo a lembrar as histórias que li em criança
e a mim mesma me invento outras
é apenas porque ainda não consegui abdicar do sonho,
que se te invento um palácio e portões dourados para o teu mundo
é apenas para poder sonhar com um abrigo como duas mãos
quando já não souber que fazer sob a trovoada,

e que se assim te escrevo
escudando as palavras na fragilidade óbvia das metáforas
é porque ainda confio
e quero que saibas que quero acreditar.


Rute Mota, algures por e aqui

no feminino #6*

perigeu

da linha indivisível dos dias
teço a minha respiração
como se perscrutasse os interstícios do desassossego
onde arrumo o corpo
noite após noite
como se dormisse

exaurida das lágrimas hoje
o meu sal é todo pele
e acordo numa sublime palavra azul
de contornos áureos
como o outono que quebra a espiga
já madura
no vento manso

do corpo
um latejar de asas
um restaurar da fome
pelos bagos que roubo da boca das manhãs
rente ao júbilo das promessas
recuperadas

e hoje
com o sabor a equinócio de todos os dias
que renascem
como devem
sou astro engolindo a escuridão

todos os brilhos são sóis que me devolvem
ao rumor das rosas.


R. C. (insensatez, claire_lunar), algures por aí

no feminino #5*

.|<*>|.

ficam as impressões de lábios
dilacerando a pele
mais viva

ficam as fúrias desmedidas
misturadas de raivoso desejo

fica a marca de dedos
cravados numa superfície
obscena
e fica a nódoa descolorida de qualquer
coisa entornada por descuido

ficam os prédios velhos
por mais um século de
escolhos
e ficam mulheres de rugas
e de negro na cal

é assim-- em 'quedâncias'--
que te amo--

-- em suspeitas de permanência
e de intemporalidade escrita
a navalha num carvalho de
duzentos anos senão para sempre
pelo menos para já


Cláudia Caetano (clAud), algures por aí

no feminino #4*

5 poemas para a noite invariável
[...]

II

Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore

trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente

trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas

Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua


Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993

no feminino #3*

Aliterando silêncios: composições

Para o Paulo Eduardo

Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento

Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa

Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras

Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira

Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paiagem

Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
- como em sereno
palco


Ana Luísa Amaral, Imagias, Gótica, 2002

no feminino #2*

Regresso

Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro

os pontos
um por um:

o sol
os braços

a boca
o sabor

ou os meus ombros

Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo

Retorno para mim
e em mim toda
desencontro já o meu regresso


Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim, Gótica, 2001

no feminino #1*

A noite

À altura de todas as estrelas
coloco as mãos para tocar o vento.
A lua é um fascínio que deixa atónito
o meu corpo, e lhe dá um cheiro
de fêmea fecundada; um fogo posto
a deixar um luar, pleno, detido nos meus olhos.
Passeio-me, longamente,
pelo lado mais insensato das palavras
e digo o nome do último pássaro nocturno,
como se nele repetisse um primeiro adeus,
tão súplice, tão magoado.
Um tango exausto sobe-me pelas pernas.
Há, na minha boca, uma rua silenciosa,
por onde se chega à fragilidade dos lábios.


Graça Pires, Ortografia do Olhar, Editorial Éter, 1996

quarta-feira, julho 30, 2003

a propósito de subversões*
que muito apreciamos por aqui, aqui fica o ponto de partida de uma que anda pelos comentários do dualidades mínimas #14:

Contraluz

o lugar branco dos exílios, no último plano do poema
e planam as pausas as gaivotas sobre as vagas
e lucilam e dançam as fragas no gume terno
das lâminas

frágil o mundo

negros os contornos das palavras

alguns blogs por onde anda a poesia #2*

No Arame
A Natureza do Mal

[continua]

7000beijos*
é verdade que me distraio, pior, que me perco entre o essencial e o acessório. sucede também que tenho preguiça de fazer links, de chamar a atenção para isto ou para aquilo, até porque parto do princípio que sou sempre a última a saber.
vou espreitando por cima do ombro da sandra e tento perceber por onde anda... aposso-me do que diz e quando me sento ao computador dou por mim a dizer para o lado com propriedade "olha hoje recomendamos um novo blog".
mas há este bailado giro, que desta vez me cabe a mim. não que entenda necessário agradecer formalmente a todos os que nos linkam (ainda ando a ver se percebo ao certo o que é o site meter e as suas potencialidades, entretanto descobri esta ferramentinha "technorati", mas daí a usá-los...), no entanto este agradecimento apetece-me.
red para além da gentileza trocada por mail, teve a amabilidade de me dedicar um post no seu 7000nomes. estava em causa um conjunto de pequenos contos de espido freire, pelo qual me interessei ao ver a referência e pelo qual cresce o meu interesse.
diz assim o conto que me calhou em sorte:

Dormiu treze anos na mesma cama e acordou sempre incomodada e dorida , mas a rainha parecia tão rigorosa que ela nunca arriscou um queixume . Quando morreu, a velha rainha fez desaparecer a ervilha , e por orgulho declarou que aquela mulher não era uma princesa .
(Espido Freire)

a informação, essa, está no 7000nomes.

achei bonito o gesto, a atenção.


terça-feira, julho 29, 2003

dual #2

Acerco-me dos ombros fundos como âncoras.
Arredondo os medos com a matéria íngreme do desejo
onde o tremor dos dedos sugere comoção.
Creio que me debruço sobre o teu nome,
ou a sugestão adivinhada do teu nome, ladeando
os percursos com que nego a profundeza do mar.

Com que afirmo a secura dos lábios,
assim que me levanto de ti
retomada de vento e maré.


.................................................................................................

(uma vez já ter passado algum tempo desde o primeiro dual, ocorre-me que talvez seja bom relembrar que estes exercícios resultam da escrita conjunta e cúmplice entre sandra e eu.)

dualidades mínimas #14

abre-se a luz da tua ausência
onde o lume a fez secreta

é possível arder uma sombra


segunda-feira, julho 28, 2003

alguns blogs por onde anda a poesia*

aqui não há poeta
little black spot
Lugar da incerteza
Ruialme

[continua]

para a Aurora*

Até que enfim!,
o vento sossegou sobre a serra
e a noite não é mais escuridão
endurecida.

Até que enfim!,
o tempo esmoreceu rente às fragas
e as canções já não se precipitam sobre
os vinhedos como raízes do
longe.

Até que enfim!,
o sol abrandou sobre a seara
e nos teus braços entrego o coração
a uma estrela amendoeira onde ficarei
à tua espera.

Até que enfim...

regresso a Roios*
Os degraus imperfeitos da casa eram blocos de granito sobrepostos sobre o xisto e possuíam a redonda irregularidade das histórias que entretanto se perderam para além do fraguedo do Castelo. Um dia, contar-se-á que as histórias afinal não partiram mas que se agarram ao último prego que agora repousa debaixo da terra quente, como que à espera de uma daquelas noites em que as violas saíam em ronda e serenatas pela rua, os amores à espreita por causa do luar.

Depois do portão de madeira que ainda se fecha sobre o patim o tempo acumula-se sobre a respiração das coisas. Sobre a água que não lava no tanque, sobre a porta por onde os regressos não se fazem, sobre a cozinha de onde o aroma a cevada não mais desperta as manhãs, sobre o copo de vinho que voltas a colocar no aparador tão intensa é a contagem das madrugadas que persistem nas tuas mãos, sobre as gavetas da cómoda onde os espí­ritos se escondem do espanto dos homens que vieram depois e não sabem ler os uivos da alcateia, sobre as camas feitas para as confidências que na penumbra me irás contar, sobre a inclinação do sótão que um dia rasgou paisagens como só a lua sabe rasgar a noite de mansinho. Cada coisa, cada aresta, cada recanto, cada segredo ainda guardado tinha raízes nesses longes que um dia foram mágoas, ou medas onde à noite te debruçavas sobre o rosto das estrelas.

À saída, não se tropeça nos degraus imperfeitos da casa mas sente-se que a noite vai cair em precipí­cio de negrura. Há coisas que nem a imensidão do tempo consegue quebrar.

domingo, julho 27, 2003

"Que cor tem o mundo na tua cabeça?"*
"Um dia, Jacinta dissera-lhe: «Que cor tem o mundo na tua cabeça?» E Bárbara repetira-lhe quase o mesmo. Bárbara e talvez alguém mais. Por isso, confundia as pessoas: os seus terrores, as suas máscaras, os seus ressentimentos, não tinham um alvo definido. Era o ambiente. Os medos, as frustrações, pertenciam à atmosfera que respiravam. O que ainda restava de vivo ardia sob a clandestinidade quotidiana, mas era já um calor gretado. Nele progredia a lava do enfado e da passividade."

Fernando Namora, Os Clandestinos, Círculo de Leitores, 1979.


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