sábado, abril 10, 2004
=0=*
"Pouco sabes do subtil fogo eléctrico que por ti arde dentro de mim."
Walt Whitman
uma luz estreita ligando a terra
ao estômago
um brilho rente às artérias tornando
mais limpo o olhar
escrevam-se versos como estátuas
como o equilíbrio impenetrável dos ascetas
e por trás- por dentro- em volta-
os átomos roçando-se lascivos de relâmpagos
sôfregos de chão
(conheço do grande estrondo a queda que é como a boca aberta para a noite
quando a noite confunde os olhos de cegueiras brancas)
cláudia caetano
Walt Whitman
uma luz estreita ligando a terra
ao estômago
um brilho rente às artérias tornando
mais limpo o olhar
escrevam-se versos como estátuas
como o equilíbrio impenetrável dos ascetas
e por trás- por dentro- em volta-
os átomos roçando-se lascivos de relâmpagos
sôfregos de chão
(conheço do grande estrondo a queda que é como a boca aberta para a noite
quando a noite confunde os olhos de cegueiras brancas)
cláudia caetano
Abril #10*
Cartaz 25 de Abril, Editor: PCP, 1984
Quis reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos
Lisboa, para Salgueiro Maia
quis reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos.
sem alma, a escuridão dissolve o mundo. a imagem
arde na memória.
quis reconstruir a casa. a pele rebenta nesse corpo
onde o plasma descobre caminhos que desconheço.
nada guardo que possa recordar.
que frase escreverei no braço direito?
conheço apenas o sangue, legenda
com que vou decifrando
a floresta e o oceano.
a imagem arde. na memória. circula por entre os dedos.
o líquido caiu sobre a rocha. adormeceu para esquecer
o sonho e o pesadelo.
permanece. a fonte.
sobrevoa a cidade. rasga esta página.
devorando a alma. lavando
as unhas e o cabelo.
o livro destruiu há muito a única imagem sobrevivente.
guardo junto do poço esse segredo
há tanto tempo sem água.
pouco restou. apenas cor. e cor distante.
aparência de cor e de textura. aparência de sangue.
este corpo revolta-se. a imagem arde.
tenta salvaguardar os glóbulos e as plaquetas.
sem alma, a escuridão dissolve o mundo.
sem veias, o sangue permanece.
noutro largo.
noutro coração.
Ruy Ventura in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Cartaz 25 de Abril, Editor: PCP, 1984
Quis reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos
Lisboa, para Salgueiro Maia
quis reconstruir a casa onde cresciam ervas e musgos.
sem alma, a escuridão dissolve o mundo. a imagem
arde na memória.
quis reconstruir a casa. a pele rebenta nesse corpo
onde o plasma descobre caminhos que desconheço.
nada guardo que possa recordar.
que frase escreverei no braço direito?
conheço apenas o sangue, legenda
com que vou decifrando
a floresta e o oceano.
a imagem arde. na memória. circula por entre os dedos.
o líquido caiu sobre a rocha. adormeceu para esquecer
o sonho e o pesadelo.
permanece. a fonte.
sobrevoa a cidade. rasga esta página.
devorando a alma. lavando
as unhas e o cabelo.
o livro destruiu há muito a única imagem sobrevivente.
guardo junto do poço esse segredo
há tanto tempo sem água.
pouco restou. apenas cor. e cor distante.
aparência de cor e de textura. aparência de sangue.
este corpo revolta-se. a imagem arde.
tenta salvaguardar os glóbulos e as plaquetas.
sem alma, a escuridão dissolve o mundo.
sem veias, o sangue permanece.
noutro largo.
noutro coração.
Ruy Ventura in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Abril é o mês mais doce*
Os lilases
Abril é o mês mais doce, pensou. Tinha a impressão de que escrevera a frase numa das suas novelas, Abril é um mês azul, os lilases, os jacarandás, os lírios. E o mar, que se estendia à sua frente, o mar no qual podiam surgir monstros de olhos verdes. Fechou o livro e pousou-o no muro, estendeu as pernas para o lado das rochas. No livro havia um rio, duas casas, uma em cada margem, e uma pequena ponte que as personagens atravessavam ao longo de toda a história. Desapareciam durante uns minutos e depois tornavam-se visíveis a meio da ponte. Tony, um homem bem-parecido que despertava paixões violentas, Jean, bonita e luminosa, com o cabelo muito louro, e Rose, uma personagem de Ibsen, feia e linda (Tu sabes o que eu sou, e voltaste para isso, finalmente, de muito longe). Era um livro ao qual apetecia voltar (e são os únicos que interessam), pelas casas, os jardins, o rio, e por eles, pela paixão e a violência que estavam tão perto da superfície. "The Other House" era uma novela surpreendente para quem conhecia a obra de Henry James, ali não havia subtileza, rodeios, tudo estava em bruto, ele nunca escrevera assim.
Abril é o mês mais doce. Voltou as costas ao mar e ficou a olhar para o jardim, os lilases estavam em flor, cresciam pelas paredes da casa e pelas árvores em volta, o jardim estava azul, ao longe viam-se as flores dos jacarandás. A casa era cinzenta e tinha uma torre. Também havia lilases na casa do romance que estava a escrever, ficava numa ruazinha de Londres, na parte da cidade de que mais gostava, perto da National Gallery, dos alfarrabistas, dos teatros. Byrne alugara o sótão durante um ano para escrever um livro sobre Iris Murdoch. E ela conhecia o rosto de Byrne, era o de um actor de cinema, durante meses recortara fotografias de revistas, voltara a ver os filmes dele (And I love you, angel), e depois fora a Londres porque precisava de ver quadros e de caminhar na rua onde ficava a casa de Ashley. Uma noite fora ao teatro, a cadeira ao seu lado estava vazia, um homem entrara quando as luzes estavam apagadas; no intervalo vira que o homem sentado ao seu lado era ele. E nem mesmo Henry James seria capaz de fazer isso, pensou. Lembrava-se de palavras que lhe dissera naquela noite, e ele, o protagonista do meu livro, tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês, e tem cinquenta e dois anos. Um sorriso. Then he has nothing to do with me, I am only twenty seven.
[...]
Ana Teresa Pereira, Mil folhas, Público, 10 de Abril de 2004.
______________________
Post dedicado à Cristina.
Os lilases
Abril é o mês mais doce, pensou. Tinha a impressão de que escrevera a frase numa das suas novelas, Abril é um mês azul, os lilases, os jacarandás, os lírios. E o mar, que se estendia à sua frente, o mar no qual podiam surgir monstros de olhos verdes. Fechou o livro e pousou-o no muro, estendeu as pernas para o lado das rochas. No livro havia um rio, duas casas, uma em cada margem, e uma pequena ponte que as personagens atravessavam ao longo de toda a história. Desapareciam durante uns minutos e depois tornavam-se visíveis a meio da ponte. Tony, um homem bem-parecido que despertava paixões violentas, Jean, bonita e luminosa, com o cabelo muito louro, e Rose, uma personagem de Ibsen, feia e linda (Tu sabes o que eu sou, e voltaste para isso, finalmente, de muito longe). Era um livro ao qual apetecia voltar (e são os únicos que interessam), pelas casas, os jardins, o rio, e por eles, pela paixão e a violência que estavam tão perto da superfície. "The Other House" era uma novela surpreendente para quem conhecia a obra de Henry James, ali não havia subtileza, rodeios, tudo estava em bruto, ele nunca escrevera assim.
Abril é o mês mais doce. Voltou as costas ao mar e ficou a olhar para o jardim, os lilases estavam em flor, cresciam pelas paredes da casa e pelas árvores em volta, o jardim estava azul, ao longe viam-se as flores dos jacarandás. A casa era cinzenta e tinha uma torre. Também havia lilases na casa do romance que estava a escrever, ficava numa ruazinha de Londres, na parte da cidade de que mais gostava, perto da National Gallery, dos alfarrabistas, dos teatros. Byrne alugara o sótão durante um ano para escrever um livro sobre Iris Murdoch. E ela conhecia o rosto de Byrne, era o de um actor de cinema, durante meses recortara fotografias de revistas, voltara a ver os filmes dele (And I love you, angel), e depois fora a Londres porque precisava de ver quadros e de caminhar na rua onde ficava a casa de Ashley. Uma noite fora ao teatro, a cadeira ao seu lado estava vazia, um homem entrara quando as luzes estavam apagadas; no intervalo vira que o homem sentado ao seu lado era ele. E nem mesmo Henry James seria capaz de fazer isso, pensou. Lembrava-se de palavras que lhe dissera naquela noite, e ele, o protagonista do meu livro, tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês, e tem cinquenta e dois anos. Um sorriso. Then he has nothing to do with me, I am only twenty seven.
[...]
Ana Teresa Pereira, Mil folhas, Público, 10 de Abril de 2004.
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Post dedicado à Cristina.
sexta-feira, abril 09, 2004
Abril #9*
Cartaz 25 de Abril, Editor: A25A, 1999
O tempo áureo
Das árvores gigantes
E dos minúsculos pigmeus
Já não existe
Tudo é nivelado, liso, correcto
O último pássaro
Que subiu mais alto
Bateu com a cabeça no tecto
Sebastião de Lorena in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Cartaz 25 de Abril, Editor: A25A, 1999
O tempo áureo
Das árvores gigantes
E dos minúsculos pigmeus
Já não existe
Tudo é nivelado, liso, correcto
O último pássaro
Que subiu mais alto
Bateu com a cabeça no tecto
Sebastião de Lorena in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
imagias #19
Rolf Horne, Seven Trees, Bay Delta, 1998
por cada árvore apoiar um pé no esquecimento
e sobre as coisas que não ardem
dizer mais uma vez o que é o mundo
por cada árvore não ter medo de não ter sede
se é na boca que trazemos o silêncio
essa pedra que sempre rasga a madrugada
por cada árvore permanecer na terra desolada
cárcere de todos os azuis finitos do céu
aí onde começa a minha alma imperfeita
por cada árvore precisar com o corpo o gume destes começos
aprender com as mãos a lamber as sombras
até que o meu sangue corra como a noite
por cada árvore voltar a não ter medo
por cada árvore apoiar outro pé no esquecimento
por cada árvore dizer mais uma vez o que é o mundo
Sandra Costa
Rolf Horne, Seven Trees, Bay Delta, 1998
por cada árvore apoiar um pé no esquecimento
e sobre as coisas que não ardem
dizer mais uma vez o que é o mundo
por cada árvore não ter medo de não ter sede
se é na boca que trazemos o silêncio
essa pedra que sempre rasga a madrugada
por cada árvore permanecer na terra desolada
cárcere de todos os azuis finitos do céu
aí onde começa a minha alma imperfeita
por cada árvore precisar com o corpo o gume destes começos
aprender com as mãos a lamber as sombras
até que o meu sangue corra como a noite
por cada árvore voltar a não ter medo
por cada árvore apoiar outro pé no esquecimento
por cada árvore dizer mais uma vez o que é o mundo
Sandra Costa
quinta-feira, abril 08, 2004
Áxion Estí*
LOUVADA SEJA a luz e a primeira
prece humana gravada sobre a pedra
a força no animal a conduzir o sol
a planta que ao trinar soltou o dia
A margem que mergulha e ergue a nuca
um cavalo de pedra que o mar cavalga
as mil vozes pequenas e azuis
o grande busto branco de Poseidon
[...]
LOUVADA SEJA a mesa de madeira
o vinho rubro com a mancha do sol
os jogos de água a brincar no tecto
o filodendro que está de sentinela à esquina
Os terraços e as ondas mão na mão
uma pegada que empilhou saber na areia
uma cigarra a convencer mil companheiras
a consciência cheia de luz como o verão
[...]
Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí),
Assírio & Alvim, 2004, Trad. de Manuel Resende.
LOUVADA SEJA a luz e a primeira
prece humana gravada sobre a pedra
a força no animal a conduzir o sol
a planta que ao trinar soltou o dia
A margem que mergulha e ergue a nuca
um cavalo de pedra que o mar cavalga
as mil vozes pequenas e azuis
o grande busto branco de Poseidon
[...]
LOUVADA SEJA a mesa de madeira
o vinho rubro com a mancha do sol
os jogos de água a brincar no tecto
o filodendro que está de sentinela à esquina
Os terraços e as ondas mão na mão
uma pegada que empilhou saber na areia
uma cigarra a convencer mil companheiras
a consciência cheia de luz como o verão
[...]
Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí),
Assírio & Alvim, 2004, Trad. de Manuel Resende.
Abril #8*
Fernando Brito
Nunca esquecer
Caladas são as sombras. Não o vento
que assobia no prumo das navalhas
que são feixes de raiva e sedimentos
duma fogueira intensa de acendalhas
inteiriçadas no fluir das páginas
de crónica tão presente, mas passada:
a de abutres sedentos e mordazes,
sugando nervo e osso e carne sã
e o imo da própria dignidade.
Discretas são as sombras. Não a macabra
gesta de bufos e verdugos, dos que
– ocultos na crueza dos seus muros,
no desplante impune dos seus coices,
de insânia e de tortura –
zombavam com a dor que nos sangrava.
João Rui de Sousa in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Fernando Brito
Nunca esquecer
Caladas são as sombras. Não o vento
que assobia no prumo das navalhas
que são feixes de raiva e sedimentos
duma fogueira intensa de acendalhas
inteiriçadas no fluir das páginas
de crónica tão presente, mas passada:
a de abutres sedentos e mordazes,
sugando nervo e osso e carne sã
e o imo da própria dignidade.
Discretas são as sombras. Não a macabra
gesta de bufos e verdugos, dos que
– ocultos na crueza dos seus muros,
no desplante impune dos seus coices,
de insânia e de tortura –
zombavam com a dor que nos sangrava.
João Rui de Sousa in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
ainda o azul*
20 anos do Íntima Fracção
Para marcar a data, mais do que para comemorar, uma edição especial da IF, só de uma hora, será transmitida através da RUC (Rádio Universidade de Coimbra - 107.9) entre a meia-noite e a uma da manhã. Também a RUM (Rádio Universitária do Minho - 97.5) virá a transmitir a emissão. As duas rádios têm transmissão online. O programa ficará para ouvir ou fazer download no site da ESEC Rádio online. Pelos amigos e apreciadores da IF, vai ser distribuído um CD-colectânea em dois formatos possíveis. Ou som-áudio, ou mp3. Contém uma selecção de músicas e sons que ajudaram a construir a IF durante estes 20 anos. O objecto tem capa da Cristina Fernandes, que trabalhou sobre fotografias de Mário Filipe Pires. Obrigado também a estes dois amigos (que nunca vi, mas conheço) pelo belo trabalho que traduz muito bem o espírito da IF.
Francisco Amaral, Íntima Fracção.
....................................
Parabéns, Francisco!
20 anos do Íntima Fracção
Para marcar a data, mais do que para comemorar, uma edição especial da IF, só de uma hora, será transmitida através da RUC (Rádio Universidade de Coimbra - 107.9) entre a meia-noite e a uma da manhã. Também a RUM (Rádio Universitária do Minho - 97.5) virá a transmitir a emissão. As duas rádios têm transmissão online. O programa ficará para ouvir ou fazer download no site da ESEC Rádio online. Pelos amigos e apreciadores da IF, vai ser distribuído um CD-colectânea em dois formatos possíveis. Ou som-áudio, ou mp3. Contém uma selecção de músicas e sons que ajudaram a construir a IF durante estes 20 anos. O objecto tem capa da Cristina Fernandes, que trabalhou sobre fotografias de Mário Filipe Pires. Obrigado também a estes dois amigos (que nunca vi, mas conheço) pelo belo trabalho que traduz muito bem o espírito da IF.
Francisco Amaral, Íntima Fracção.
....................................
Parabéns, Francisco!
quarta-feira, abril 07, 2004
Abril #7*
Alunos da Escola E.B. 1 de Alpiarça
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos.
Sophia de Mello Breyner Andresen in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Alunos da Escola E.B. 1 de Alpiarça
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos.
Sophia de Mello Breyner Andresen in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
memorabilia*
Primeiro foi O Principezinho, o filme, só depois cheguei ao livro. Um dia uma menina deu-me a descobrir a Terra dos Homens e voltei a Saint-Exupéry. E foi um novo fôlego.
Hoje há novidades. Tropecei na notícia há pouco, numa pausa para chocolate. Parece que encontraram os destroços do avião. Se calhar era bom quando não sabiamos onde estavam, mas eu sempre encontro um estranho (talvez disfuncional) conforto no reencontro com os objectos perdidos .
No meio das recordações fui encontrar um poema a propósito:
Um avião plana sobre o deserto, as dunas dançam,
o vento deambula. Pressinto na cor melancólica dos teus olhos
que aproximas o tempo da poesia da linguagem clara e doce
do inacessível, como se reconhecesses nos contornos acesos do
silêncio, a elementar respiração de todas as palavras.
É sempre por esta altura, que se quebram as tuas asas sobre
a presença atenta e consciente do deserto e, sempre como quem
responde, obliquamente, reinventas o princípio da imobilidade,
rente ao sereno movimento do anoitecer.
..........................
Depois, fico só. Eu e o deserto, entre a areia e as estrelas,
entre dois infinitos, num crescendo de silêncio, no começo
da respiração.
E, no entanto... Solidão cheia de água. No centro da noite silenciosa,
o rumor das fontes, a nudez dos sonhos - de mansinho,
como a inocente ondulação dos campos de trigo da minha infância,
como a planície amarela de girassóis, entardecendo,
como o frágil regresso das andorinhas.
.......
E no teu «silêncio feito de mil silêncios», de olhos fechados
sob a terna inscrição da areia e das estrelas
em mim, reencontrar a simplicidade poética,
amorosa,
do mundo
em mim.
Sandra Costa
Primeiro foi O Principezinho, o filme, só depois cheguei ao livro. Um dia uma menina deu-me a descobrir a Terra dos Homens e voltei a Saint-Exupéry. E foi um novo fôlego.
Hoje há novidades. Tropecei na notícia há pouco, numa pausa para chocolate. Parece que encontraram os destroços do avião. Se calhar era bom quando não sabiamos onde estavam, mas eu sempre encontro um estranho (talvez disfuncional) conforto no reencontro com os objectos perdidos .
No meio das recordações fui encontrar um poema a propósito:
Um avião plana sobre o deserto, as dunas dançam,
o vento deambula. Pressinto na cor melancólica dos teus olhos
que aproximas o tempo da poesia da linguagem clara e doce
do inacessível, como se reconhecesses nos contornos acesos do
silêncio, a elementar respiração de todas as palavras.
É sempre por esta altura, que se quebram as tuas asas sobre
a presença atenta e consciente do deserto e, sempre como quem
responde, obliquamente, reinventas o princípio da imobilidade,
rente ao sereno movimento do anoitecer.
..........................
Depois, fico só. Eu e o deserto, entre a areia e as estrelas,
entre dois infinitos, num crescendo de silêncio, no começo
da respiração.
E, no entanto... Solidão cheia de água. No centro da noite silenciosa,
o rumor das fontes, a nudez dos sonhos - de mansinho,
como a inocente ondulação dos campos de trigo da minha infância,
como a planície amarela de girassóis, entardecendo,
como o frágil regresso das andorinhas.
.......
E no teu «silêncio feito de mil silêncios», de olhos fechados
sob a terna inscrição da areia e das estrelas
em mim, reencontrar a simplicidade poética,
amorosa,
do mundo
em mim.
Sandra Costa
já não se sonha mais com a flor azul*
Ontem sempre parei o carro e colhi três daquelas flores. Não estou convencida que sejam miosótis, têm um azul a tender para o lilás. Mas, na berma da estrada, entre os silvados e o silêncio de fim de tarde, são das coisas mais belas que tenho visto. Tão frágeis, tão livres e despegadas de tudo o resto que nos rodeia que, por instantes, as tomo por poemas. Pressinto que quando regressar já elas não estarão lá.
_____
O título deste post encontrei-o, por acaso, através do google. É de Walter Benjamin e pode ler-se sobre, aqui.
Ontem sempre parei o carro e colhi três daquelas flores. Não estou convencida que sejam miosótis, têm um azul a tender para o lilás. Mas, na berma da estrada, entre os silvados e o silêncio de fim de tarde, são das coisas mais belas que tenho visto. Tão frágeis, tão livres e despegadas de tudo o resto que nos rodeia que, por instantes, as tomo por poemas. Pressinto que quando regressar já elas não estarão lá.
_____
O título deste post encontrei-o, por acaso, através do google. É de Walter Benjamin e pode ler-se sobre, aqui.
terça-feira, abril 06, 2004
Abril #6*
Júlio Pomar
Uma nova canção
Aproximo a lâmpada da boca
do túnel. Este
é o momento em que todas
as cápsulas deflagram, em que as águas
se misturam, os cravos
explodem.
Tragam
a manhã para a rua, desfraldem
o estandarte do sol, desfolhem
flores e guitarras. Acertem
os relógios pelo ritmo
do sangue, acelerem
o compasso das velhas
sinfonias e escrevam
no caderno do vento
uma nova canção.
Albano Martins in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Júlio Pomar
Uma nova canção
Aproximo a lâmpada da boca
do túnel. Este
é o momento em que todas
as cápsulas deflagram, em que as águas
se misturam, os cravos
explodem.
Tragam
a manhã para a rua, desfraldem
o estandarte do sol, desfolhem
flores e guitarras. Acertem
os relógios pelo ritmo
do sangue, acelerem
o compasso das velhas
sinfonias e escrevam
no caderno do vento
uma nova canção.
Albano Martins in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
segunda-feira, abril 05, 2004
Abril #5*
Mário Cesariny
Até ao meio do deserto escrevo até
até ao meio do deserto escrevo até
de parménides a horácio de horácio até aqui
para chegar ao templo dos desastres e poeiras
em suas cidades de comércios actuais
e seus oráculos antigos em delfos
e dizer o amontoado monte dos sinais
onde os bárbaros crescem nas estradas
com suas máquinas de selva
programadas
e aqui chegam aqui chegam
fiéis à mala de bruxelas
ou à antiga c.e.e.
procura-se urgentemente em portugal
a flor da liberdade
ou
um pássaro de abril
Maria Azenha in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Mário Cesariny
Até ao meio do deserto escrevo até
até ao meio do deserto escrevo até
de parménides a horácio de horácio até aqui
para chegar ao templo dos desastres e poeiras
em suas cidades de comércios actuais
e seus oráculos antigos em delfos
e dizer o amontoado monte dos sinais
onde os bárbaros crescem nas estradas
com suas máquinas de selva
programadas
e aqui chegam aqui chegam
fiéis à mala de bruxelas
ou à antiga c.e.e.
procura-se urgentemente em portugal
a flor da liberdade
ou
um pássaro de abril
Maria Azenha in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
domingo, abril 04, 2004
Abril #4*
Ivone Ralha
Fogo Posto
Foi de amor e de cravos. Foi floresta
logo em Maio seguinte: de harmonia.
Foi, num abraço, o povo inteiro em festa.
Foi o coro geral. E duraria
se não fora, de Agosto, o fogo posto,
o venenoso cuspo da serpente,
o dente, a garra, a máscara sem rosto
de urso a leste e puma a ocidente.
Foi a frescura nova, prometida
em, Abril, por Abril, que se negou
a ser gaivota viva em nossa vida.
Foi tudo e não foi nada. Foi um voo.
Pingo de cera de asa derretida
na mão de mais um dia que findou.
António Luís Moita in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
Ivone Ralha
Fogo Posto
Foi de amor e de cravos. Foi floresta
logo em Maio seguinte: de harmonia.
Foi, num abraço, o povo inteiro em festa.
Foi o coro geral. E duraria
se não fora, de Agosto, o fogo posto,
o venenoso cuspo da serpente,
o dente, a garra, a máscara sem rosto
de urso a leste e puma a ocidente.
Foi a frescura nova, prometida
em, Abril, por Abril, que se negou
a ser gaivota viva em nossa vida.
Foi tudo e não foi nada. Foi um voo.
Pingo de cera de asa derretida
na mão de mais um dia que findou.
António Luís Moita in Na Liberdade,
antologia a lançar durante as comemorações do 25 de Abril
com a chancela de “Garça Editores” (Peso da Régua)
Enviado por Nicolau Saião
que o mundo me desminta*
vou pela rua guardo sombras para um verso
e em redor há janelas coloridas que envelhecem
tão próximas de mim como só eu sei
o que é o azul do céu igual ao azul do mar
vou e não ouço o medo nem os pulsos quebrados
em forma de caules ainda que de vez em quando
me detenha sob o cheiro das frésias já só
com o esforço táctil de imaginar o impossível
vou e não quero que o mundo me desminta
Sandra Costa
vou pela rua guardo sombras para um verso
e em redor há janelas coloridas que envelhecem
tão próximas de mim como só eu sei
o que é o azul do céu igual ao azul do mar
vou e não ouço o medo nem os pulsos quebrados
em forma de caules ainda que de vez em quando
me detenha sob o cheiro das frésias já só
com o esforço táctil de imaginar o impossível
vou e não quero que o mundo me desminta
Sandra Costa
o ofício de viver #3*
1946| 4 de Abril
Todas as manhãs - sob a forma de um cheiro a bafio, de humidade, de calor, deixamos como uma marca, como um corpo astral, a fadiga no leito.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.
1946| 4 de Abril
Todas as manhãs - sob a forma de um cheiro a bafio, de humidade, de calor, deixamos como uma marca, como um corpo astral, a fadiga no leito.
Cesare Pavese, O Ofício de Viver,
Relógio d'Água, 2004, Trad. de Alfredo Amorim.