<$BlogRSDUrl$>

sábado, julho 19, 2003

imagias* #1


Gustav Klimt, Danae

Repara como em mim a noite não é escura,
ardem evidências num ângulo do desejo,
como se de repente pudessem todos
os percursos agitar uma pálpebra,
modelar um seio.

Repara como em mim a noite é um vestígio
de inocência, um volúvel manto de segredos
onde te atreves a percorrer uma rubra
solidão.


........................................
'Roubando' um título de Ana Luísa Amaral, as imagens e os poemas.

começar o Sábado com um poema (variação)*

As mãos à procura de um imperdoável
litoral que torne tangíveis todos os meus
segredos: não quero outra geografia
matinal.

(David escreveria 'outra música de cama')

começar o Sábado com um poema*
Depois de duas semanas no lindíssimo mas apenas tolerável-porque-lá-me-sinto-enclausurada Arquivo Distrital do Porto, e a saga continuará por mais uns dias, absorvendo/folheando processos, tenho saudades de Mourão-Ferreira (deu-me assim de repente), que é como quem diz da sua poesia táctil, que me torna o corpo mais corpo. As mãos à procura de um imperdoável litoral que torne tangíveis todos os meus segredos.

Abrindo o livro ao acaso:

Sotto Voce

É possível que eu esqueça a liquidez da Lua
o sono dessa rua às três da madrugada
a longa caminhada orquestrada pela chuva
a sombra de uma luva em cima de uma vaga

É possível que eu esqueça o dia em que nasceste
Em que depois da luva apareceram as mãos
É possível que eu esqueça Ou que me seja indiferente

É preciso que não É preciso que não


David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Ed. Presença

quinta-feira, julho 17, 2003

exercício da maçã e da janela:*
abrir um daqueles ficheiros do word, já embrulhados e amarrados há algum tempo, vulgo remessas-para-editores-que-será-que-os irão-ler?, e sem coincidências tentar encontrar um poema de maçã e outro de janela. Resultado? Da árvore só colhi maçãs. Escolhi esta. Sobre teorias não me pronuncio.

A minha maçã (do eterno retorno)

uma maçã,
(de sol)

sempre manhã
(bravias, interrogadas de vento)

uma constelação,
(de girassóis)

devagar a solidão
(curva, violácea sobre o tempo)

uma expressão,
(de água)

sempre lua,
sumarenta.

janelas e maçãs*
o dia terminando de acabar
é sempre esta coisa demorada de sol que teima em não morrer

tenho uma maçã na mão e olho pela janela

aberta
os cotovelos no parapeito num ângulo impreciso de perpendicularidade à casa
e na mão a redondeza da maçã em suspeito rubor

mato mais uma peça de fruta
enceno a sua morte para me sobreviver
não que a coma
apenas que de novo desafio o vôo que não acontece

.....................................................................................

a propósito de, numa breve saída da blogosfera, encontrar logo um dos habituais da blogosfera (andam por todo o lado B), intra e extra muros). perguntava o david:
Já repararam que quase todos os textos que falam de janelas e de maçãs e de como o narrador se relaciona com estes dois objectos, são um pouco suicidas?
Será impressão minha?


isto há gente com cada ideia...


baby won't you please come home*


Baby, won't you please come home?
Baby, won't you please come home?
I have tried in vain
Nevermore to call your name.
When you left you broke my heart,
That will never make us part.
Every hour in the day you will hear me say,
Baby, won't you please come home?
I mean, baby, won't you please come home?


...................................................................
Jacinta, 21:30, Fnac do Norteshopping.
Ouvi-la foi muito bom.

quarta-feira, julho 16, 2003

fly me to the moon #3
há uns anos atrás chegou-me às mãos, por acaso, o segundo álbum homónimo dos tindersticks. rendi-me, até porque na altura era um verdadeiro achado, nunca tinha ouvido falar deles, nem estava habituada a ouvir coisas como as deles. gosto deste disco, porque me comove, gosto mais porque foi o primeiro. gosto da música, gosto da voz, gosto do ambiente.



My Sister
(Tindersticks)

Do you remember my sister? How many mistakes did she make with those never
blinking eyes? I couldn't work it out. I swear she could read your mind, your
life, the depths of your soul at one glance. Maybe she was stripping herself
away, saying

Here I am, this is me
I am yours and everything about me, everything you see...
If only you look hard enough
I never could.
Our life was a pillow-fight. We'd stand there on the quilt, our hands clenched
ready. Her with her milky teeth, so late for her age, and a Stanley knife in
her hand. She sliced the tyres on my bike and I couldn't forgive her.

She went blind at the age of five. We'd stand at the bedroom window and she'd
get me to tell her what I saw. I'd describe the houses opposite, the little
patch of grass next to the path, the gate with its rotten hinges forever wedged
open that Dad was always going to fix. She'd stand there quiet for a moment. I
thought she was trying to develop the images in her own head. Then she'd say:


I can see little twinkly stars,
like Christmas tree lights in faraway windows.
Rings of brightly coloured rocks
floating around orange and mustard planets.
I can see huge tiger striped fishes
chasing tiny blue and yellow dashes,
all tails and fins and bubbles.
I'd look at the grey house opposite, and close the curtains.
She burned down the house when she was ten. I was away camping with the scouts.
The fireman said she'd been smoking in bed - the old story, I thought. The cat
and our mum died in the flames, so Dad took us to stay with our Aunt in the
country. He went back to London to find us a new house. We never saw him again.

On her thirteenth birthday she fell down the well in our Aunt's garden and
broke her head. She'd been drinking heavily. On her recovery her sight
returned, a fluke of nature everyone said. That's when she said she'd never
blink again. I would tell her when she started at me, with her eyes wide and
watery, that they reminded me of the well she fell into. She liked this, it
made her laugh.

She moved in with a gym teacher when she was fifteen, all muscles he was. He
lost his job when it all came out, and couldn't get another one. Not in that
kind of small town. Everybody knew everyone else's business. My sister would
hold her head high, though. She said she was in love. They were together for
five years until one day he lost his temper. He hit over the back of the neck
with his bullworker. She lost the use of the right side of her body. He got
three years and was out in fifteen months. We saw him a while later, he was
coaching a non-league football team in a Cornwall seaside town. I don't think
he recognized her. My sister had put on a lot of weight from being in a chair
all the time. She'd get me to stick pins and stub out cigarettes in her right
hand. She'd laugh like mad because it didn't hurt. Her left hand was pretty
good though. We'd have arm wrestling matches, I'd have to use both arms and
she'd still beat me.

We buried her when she was 32. Me and my Aunt, the vicar, and the man who dug
the hole. She said she didn't want to be cremated and wanted a cheap coffin so
the worms could get to her quickly. She said she liked the idea of it, though I
thought it was because of what happened to the cat, and our mum.


dualidades mí­nimas #11

Nessas noites quase imóveis quase
brancas de um Agosto que nunca existirá
atrevo-me a não te tocar.

terça-feira, julho 15, 2003

o lugar às palavras*
que não podem ficar perdidas num longínquo comentário. Ainda sobre Roios, a Jonas escreveu, hoje, isto:

«Trás-Os-Montes... Tantas vezes penso em Roios e tantas vezes quero voar até lá, rasar fragas e montes e searas, chorar com saudades do mar, mas continuar a levantar a terra quente. Uma vontade louca de ver a escuridão mesmo à minha frente e um lençol de estrelas ao olhar para cima... Chegar a meio de um monte a suar e deixar-me cair no meio de um campo, criar raízes com a terra e com a Terra, pedir licença a uma figueira para arrancar um figo e comer, e vibrar com a doçura de uma amora ou a acidez de uma maçã, e desobedecer ao silêncio da noite com um grito que mais ninguém ouve... Sítio onde toda a poesia faz sentido. Mesmo sem palavras.»

Sim, sem palavras, querida Jonas.

«|«*
a língua num dizer
de saliva sobre a carne em estremecer
de suor

a língua num culto
de sangue sobre o pescoço em tensão retesada
de músculo

- posso dizer esternoclidomastóideo num poema
sem o seu sacríficio?-

é repouso que procuro e conforto
de cada vez que atabalhoados se fazem
os trilhos da manhã


]|&|[*
reservo-me da falta de ti à custa de te prolongar no que comigo guardo– se de ti me afasto, levo o teu cheiro. e a noite, sobrevivo-a a milímetros da insónia fingindo o exercício de me ocupar, com(o) o aqui, agora.
Mas, quando estás, esgoto as estratégias, faz-se a tua presença terrífica e dolorosa em mim, se de mim não exiges sequer o desejo. porque, sabe-lo bem, não se pode querer para sempre quem desse querer não necessita. não sem consequências desastrosas. ou, simplesmente, não serei assim tão crescida. pouco mais se nos poderia oferecer tão redutível e artificial quanto um amor com prazo de validade aceite à partida, mesmo que com tantas sucessivas prorrogações.
vem, adiemos, para já, mais uma vez, o fim que prometeste, façamo-lo, como até agora, fingindo continuidade onde hesitações. adiemos o fim lá para a frente, e façamos de conta que não sabemos o que lá da frente vem, ou para que frente vamos– sabe-se apenas da guerra de trincheira.
fecho os olhos para não ver a distância. para já, mais não preciso que a certeza do teu corpo em perímetro tangente ao meu.


de um encontro*
na passada sexta-feira lá me dirigi ao alçude para a tal conversa com os escritores da lusofonia. foi, sem dúvida, um encontro agradável. limitei-me, claro está, a ouvir. afinal, havia gente com dúvidas e questões mais prementes que as minhas, já para não falar no desnecessário (ou intimidante) microfone que a pessoa tinha de usar. não tinha grande intenção de aqui deixar estes comentários avulsos, neste registo diarístico que me convenço não possuo (a gente ilude-se... lá diz o ditado acerca do pior cego), mas a verdade é que o momento teve o seu quê de especial, uma ou outra coisa merecem ser registadas, uma ou outra coisa que precisava ouvir.
às tantas, falou-se do ensino de língua portuguesa em timor, de entender até que ponto faz sentido. a mim sempre me fizera alguma confusão esta nossa insistência à volta do assunto, e depois culpava-me por uma parte de mim não ser imune e desejar o mesmo. veio, sem saber, francisco josé viegas ao meu encontro, encontrou ele a melhor desculpa possível, tão boa que me senti de imediato absolvida. nenhum dos presentes foi particularmente optimista em relação ao futuro do português por aqueles lados, no entanto encantou-me f.j.v. quando disse (terá sido mais ou menos isto) que não se tratava, para ele, de qualquer espécie de patriotismo, desejava que em timor se falasse português apenas porque assim os entenderia(mos) melhor. sim, é uma questão de egoísmo, mas estes egoísmos dos afectos comovem-me, acredito até, que pelo afecto se legitimam. também eu desejava que em timor o uso da língua portuguesa se generalizasse, e agora, graças ao viegas, desejo-o sem culpas neo-colonialistas (coisa ridícula de se dizer, assim, por alguém da minha geração, mas que hei-de fazer?).
eles falaram de livros, dos seus livros e dos livros dos outros, da língua, a nossa, e das línguas, dos outros. creio que foi agualusa que trouxe à conversa a torre de babel e de como era uma vitória isto de termos muitas línguas, isto de termos tantas formas de nomear o mundo e de como cada língua detém a possibilidade de dizer mais de qualquer coisa... precioso "isto", não?


segunda-feira, julho 14, 2003

pelo rio acima,*
terminar um ano, construir memórias no adejar das margens, pressentir no ângulo das árvores sobre a água irremediáveis despedidas, guardar o sol no rosto como se as horas pudessem ser eternas.

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!


Miguel Torga

[Sem fotos da viagem, fica um poema e o cansaço.]

domingo, julho 13, 2003

ainda há poesia por aqui?*

Hoje apetece-me uma pergunta.
Corro a persiana da janela e
verifico o inexplicável: o mundo
espera por mim ao fundo da rua,
no começo do dia.

Em cada sonho desfeito, dobro
a luz da manhã sobre a cama.
Seria a resposta perfeita.

anda poesia por aí*
Aqui Vitorino Nemésio e Carlos de Oliveira. [Também gostei do poema de José Fernando Guimarães.]
Aqui Joaquim Manuel Guimarães.
Almada Negreiros aqui.
E não é poesia mas é como se fosse, Camus aqui.

ao som de Adios Nonino*
de Astor Piazzolla; o piano a prolongar-me os silêncios que encontro em mim como as ilhas infinitas de Lorca; o acordeão que apaga tudo isto e já delineia o corpo de uma mulher, em movimentos quase entrecortados de tango; o violoncelo em pretextos nebulosos sobre a superfície das coisas para que no fim nada mais reste senão esta minha respiração mais profunda, o regresso ao silêncio.

o bom regresso*
Depois de há dias o ter esgravatado todo, à conta das referências da sua estante, o bicho que a escala voltou. Não deixando a notícia, deixo a saudação.

dualidades mí­nimas #10

rodear-te o corpo de
carícias de hortelã e assim te
ter na frescura do beijo


This page is powered by Blogger. Isn't yours?