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sábado, fevereiro 21, 2004

eros #6


Dennis Stock


1
um desassossego
na coincidência dos lábios

2
a ondulação dos caules
no sobressalto dos flancos

3
falo
metamorfose:
uma flor numa outra flor

4
seixo    pétala    silêncio
paisagem descalça depois

Sandra Costa

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

alter eros #3


Carlos Martins


Nómadas do Outro


                       Qual risco a língua desenha ao passar
                       de uma boca a outra? Não há exatidão,
                       exceto no desejo.


                       Floriano Martins


É assim que respira (nele), assim que propaga
o dia no seguinte como um mapa aberto
para o tempo. Não é disso que se morre:
de não haver explicação para o que sabe (ela).
A morte deve ser outra coisa que inventámos:
dar um nome ao que falta, salvar alguém de costas.
Ela volta o rosto (nas mãos dele) atira os olhos
ao chão para sentir a pedra, a larva no copo,
o cheiro da página no livro aberto a meio.
Sente o cheiro (dele?) nessa folha. Pergunta
onde estará no próximo capítulo como se escrever
o adiasse. Salta as páginas, tropeça num amor
que desconhece. Um, nómada do outro,
andam pelos dias colados à pele que despem
à tardinha. Um órgão, um sentimento, uma linha
em verso: tudo se confunde num só corpo.
Beija-lhe o pé (que agora é ela),
faz a cintura com as mãos, desfaz as pernas
com a exactidão dos dentes.
Rangem as entranhas, arrancada a carne
pelos cabelos, e adormecem esventrados
nos sabores do verão. Mas não é a morte
que destece o corpo. A morte é o que inventámos
para não cuidarmos dela. Nómadas de tudo
(e mesmo deles) saltam com rãs sobre cerejas.
Parece dia no lençol caído, o dia a levantar-se
em desalinho com um beijo colado na dobra.
O risco da língua na pele (por dentro dela) é o risco
que correm os dias de se tornarem só belos.
Página ilegível. Tingida pela carne das cerejas.
Suada até à última letra, ao primeiro gemido
(que arde deles) na almofada da manhã seguinte.

Rosa Alice Branco

enviado por Nicolau Saião

Alentejo Revisitado*


                        a meu avô Francisco

I

Do rosto que olha   o Alentejo é o corpo
mas não somente o corpo   a árvore
figueira junto ao mar    um pássaro
perto do coração

Trigo que escutamos e que vemos
antes de ser   o pão

A mão que desvenda
o sítio exacto da alma
vegetal   animal   e mineral
em todos os caminhos

Para sempre
um país sob a luz    menino imemorial


I I

Durante tanto tempo foste
o companheiro das coisas vivas

Terás de encher  agora  os teus bosques ardentes
de neblina e silencio  e animais sem condição

E deverás olhar as coisas mortas
como se todas as manhãs elas partissem

Tudo o que tens e que tiveste outrora
a paz que em vão buscaste    tantos anos
nesse lugar fecundo   ficará

Quanto oceano quanta sede quanta voz
na escuridão das searas que amanhecem

Alentejo   um pão cortado
na sombra dos candeeiros dentro das casas desertas.

   in “Nigredo/Albedo – o livro das translações”

enviado por Nicolau Saião

repentinamente sábios*
repentinamente sábios,
os teus dedos nacarados
recortam-me os lábios
em rumores declinados.

sou todo eu esta vontade
que nos deixa o corpo
livre como a liberdade


Alexandre Monteiro

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

dualidades mí­nimas #38

outra era quando os olhos assim
cansados confirmavam anónimos ferrolhos
encostados à queda das magnólias

Sandra Costa

hoje, recomendaram-me:*



Três filmes - uma comédia, um thriller e um melodrama. Um só realizador: Lucas Belvaux. As mesmas personagens, os mesmos actores, histórias que se tocam, cruzam. Mas os pontos de vista, os olhares, são diferentes. Os protagonistas de uma história são personagens secundárias noutras histórias. Os filmes são um todo. Mas também podem ser vistos separadamente.

No cinema King, em Lisboa. Em breve, no e na Cidade do Porto.

Do outro lado do Atlântico*



Estações do Acaso


                        Soletro os dias em cada coisa que me olha
                        quando me sinto a vê-la. É tudo.
                        E não há desculpas para o que faço.


                        Rosa Alice Branco


Acender o fogo pela sombra da chama.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Assim um corpo (dela) diz como deseja
ser escrito pelo outro (dele) que o visita.
Ensinar ao corpo como sair de si.
Traçar equidistâncias entre as quedas.
Os pormenores do fogo (ela afiança)
são o melhor regaço dentro do olhar.
E o fixa com tanto esmero que as dobras
do corpo se despem ante o ruído dos passos
(dela) que são vestígios da sumição
das roupas (dele). Por onde o enigma
apura suas harmonias? Por onde um corpo
aprende a soletrar o outro? (ela não diz)
Esvaziar a noite de vícios que a definam.
Deixá-la sem chance de reconhecer-se.
Estar a esboçar um tratado de trevas
requer a cegueira precisa em cada afeição.
Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?
Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?
Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se
um soletra o dia, o outro deslinda a noite.
Qual risco a língua desenha ao passar
de uma boca a outra? Não há exatidão,
exceto no desejo. Um corpo (ela o tenta),
ao cair no outro, é em si que repercute.
O amor tateia entre nódulos (ele matuta).
Uma atração sublime pelas dissonâncias
parece iludir a queda dos corpos amorosos.
O que tens no ventre (diz ele) é o abismo
de que me sirvo para um dia alcançar-me.
Apenas o acaso resguarda tais planos (ela).
Os corpos sondam o pendor pelo extremo.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Acender o fogo pela sombra da chama.

Floriano Martins*

_______________

* Floriano Martins é brasileiro, ensaísta, professor e editor, sendo, com Cláudio Willer, também director da Agulha.

enviado por Nicolau Saião

eros #5


Max Ernst

raia-lhe o corpo pelo vinco
troca-lhe os flancos pelas voltas dos braços

põe-lhe o beijo
ali onde sabes que gosta
onde prometes esquecer o tempo
até ao advento do corpo


cláudia caetano

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

Inscrição*



Na parede já velha leves riscos, duas
Ou três manchas vagas, um vestígio
De memórias   de insectos    de retratos.

Um pretexto, afinal, para que vivam
Recordações saídas de outros mundos
Como a vontade súbita de erguer
A mão que nos fascina, uma palavra
Desprendida, temível, solitária.

Como um olhar seguindo
O nível do horizonte, quando à tarde
Os pássaros se despedem para sempre.

Qualquer coisa esquecida
Plena de movimento ou de amargura.

Como o fogo ou a água
Num poema de outrora
Alheio    ou por escrever

Nos outros reinos ausentes
Num pensamento vago

Ou num papel perdido.

in "Escrita e o seu contrário"

enviado por Nicolau Saião

Nicolau Saião*

Depois de ontem ter aqui publicado um poema de Nicolau Saião, foi com bastante alegria que o tempo dual recebeu o agradecimento do próprio e a sua generosa disponibilidade para colaborar com este blog. Não nos fizemos rogadas e aceitámos desde logo mais esta partilha que só a blogosfera permite. Ao Nicolau Saião e também ao Rui Manuel Amaral, o nosso obrigada.

que também os há cá já eu sabia...*
Aqui há tempos falei de um livrinho de um médico francês que nos dava uma perspectiva interessante da sexualidade. E, não sei bem porquê, hoje, ao ler este artigo do Público, voltei a lembrar-me do tal livrinho. Isto de se fazer associações é uma coisa engraçada.
Enfim, tratam-se de coisas algo diferentes, eu sei. Em todo o caso, a associação deve decorrer do facto dos senhores em questão estarem ambos ligados à área da saúde, mais que isso, estou em crer que se dariam muito bem caso se conhecessem. E depois é esta coisa de achar que também isto merece o violino desafinado...
Segundo Villas-Boas é "infelicidade de ser educado por homossexuais, sejam dois ou um". Parece que o doutor se afirma respeitador do direito ao livre exercício da sexualidade; sublinha é que tal não significa dizer que se trata de "um comportamento normal". Face a legislações que permitem a adopção por homossexuais, considera que "é uma perversão o que se passa nalguns pontos da Europa", nomeadamente na Holanda. "É demasiado grave o que se está a passar no mundo." (do artigo). Giras também são as considerações acerca do pleno exercício da feminilidade, mais giras as considerações sobre o que a comunidade científica sabe e suas implicações, também com a sua piada termos como "sexualidade original" (Adão e Eva?).
Eu confesso que não me surpreende este tipo de raciocínio. O que ainda me surpreende é a descomunal falta de tacto. Já vejo a militância a pedir o sangue do homem. Penso que não será preciso tanto. Depois penso que o homem é Presidente de Comissão, por muito acessório e decorativo que seja. E penso também que não era preciso tanto.


terça-feira, fevereiro 17, 2004

...*

1
Há uma espécie de sombra
que suporta o poema.

2
Uma espécie de fábula
polida com o nome
das árvores.

3
Uma espécie de hábito
que se enraíza.

4
E a hora seguinte
onde tudo sucumbe.


Sandra Costa

DiVersos 7*

1.
Coisas, coisas e labirintos, pedras entre
pedras – que o sol aqui se põe muito mais tarde
A sonolência da erva    Fórmulas mortas
que a memória nos dá. Tudo o que de longe pela noite
se vê    Animais parados como desejos    Como
desconhecidas raízes    Figuras que de repente
erguemos por dentro (a casa nova e sem ninguém, a
oliveira cortada, a mágoa de saber que as flores e frutos
são já de uma outra vida, pois que os meses
inconclusos se afastam). Bosques que num repente
devagar    se consomem    Destroços na lembrança
nos olhos    ou nas chagas
Diferentes coisas sobre    os espaços da manhã

Nicolau Saião, em DiVersos 7,
Edições Sempre-em-Pé, 2003.

_____________


Nicolau Saião,
adaptado da Nota Prévia e Biobibliográfica

Há um deserto na Europa - o único que nela há: o Deserto de Tabernas. A norte de Almeria, entre as serras de Filabres e Alhamila, com uma superfície protegida de cerca de 13 mil hectares. Tabernas é um lugar surpreendente, de beleza severa, densa, inigualável e que cativou absolutamente o A. desde que este o viu pela primeira vez no início de 1980.
O poema que aqui se apresenta é o primeiro do livro que sobre o local vem escrevendo desde a última visita prolongado que lhe fez, ou seja 1999. Sediado em Gergal, ante-sala do deserto.

Nicolau Saião nasceu em 1946 em Monforte do Alentejo. Poeta e pintor. Publicou Os Objectos Inquietantes, Flauta de Pan e Os Olhares Perdidos (poesia) e Passagem de Nível (teatro). Tem para sair As Vozes Ausentes (prosa diversa, Ed. Universitária), e Negredo/Albedo, o livro das translações (Black Sun). Traduziu Vestígios, de Gérard Calandre (a sair, Ed. Universitária) e Fungos de Yugoth, de H. P. Lovecraft, (publicado por Black Sun).

Adenda: colabora com o Quartzo, Feldspato & Mica.

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

a voz de um poeta não oculta outra voz*

tens as mãos muito frias
e a água corta-as
como lâmina fina
para ver ao microscópio,

tens as mãos muito brancas,
linho cru,
e a água como fios

não sentes as mãos
mas que importa?

deixaste-as nas armadilhas
e o lince,
em troca,
deu-te os olhos,

sabes que a lepra
não é uma doença dos nossos dias

Ana Paula Inácio, Vago Pressentimento Azul Por Cima,
Ilhas, 2000.

domingo, fevereiro 15, 2004

variação*

o que somos a cada regresso
é agora a única matéria do poema

ainda que estes já não perturbem
a quieta superfície das águas


Sandra Costa

alter eros #2


Francisco Simões



VII

De joelhos tocas
a lâmpada púrpura
De leve a envolves
nem sei com que luva

que lume    que lágrima
que sumo    que soma
de trémulas asas
e roxas papoulas

Ó líquido sol
tanto mais agudo
quanto hesita agora
entre mel e cuspo

O cerco retomas
à roda e ao longo
Toda te absorves
toda enfim te encontras

a mim me encontrando
mais perto que nunca
do lúcido âmago
da tua ternura

Deglutes    Derretes
Derrapas    Devoras
Insistes sem pressa
porém pressurosa

O céu tem de súbito
a forma de uns lábios
E também de um túmulo
Tu tão muda    Eu falo

para que me acudas
pois já se derrama
em gotas de lua
a púrpura lâmpada

David Mourão-Ferreira, Música de Cama,
Ed. Presença, 1994

__________

Obrigada Ana por o teres encontrado.

para a Janela*



Confirma-se que eles estiveram a trabalhar.
Confirma-se que eles não deram beijos.
Confirma-se que eles são chatos e sisudos.
Confirma-se que, à última da hora, o Repórter Lírico apareceu para assinar a acta.
Confirma-se que Martin Parr não foi o nome mais vezes pronunciado.
Confirma-se que me encanta conhecê-los.

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