sábado, outubro 04, 2003
2+1*
duas novas entradas e uma actualização:
E há a saudade-saudade, sobre a qual João Serenus se cala, e eu, Franz Kafka, desconverso. É a tal saudade-saudade nos abismos de um espelho.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
enquanto dormes Gil
duas novas entradas e uma actualização:
E há a saudade-saudade, sobre a qual João Serenus se cala, e eu, Franz Kafka, desconverso. É a tal saudade-saudade nos abismos de um espelho.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
enquanto dormes Gil
é com uma teia de aranha #2*
é com uma teia de aranha
que parto à procura das palavras:
assim encontre os ângulos
mais antigos do mundo
e permaneça suspensa a poesia
é com uma teia de aranha
que parto à procura das palavras:
assim encontre os ângulos
mais antigos do mundo
e permaneça suspensa a poesia
sexta-feira, outubro 03, 2003
é com uma teia de aranha*
É com uma teia de aranha
que cubro os olhos do silêncio
para que a morte não perturbe
a última palavra pronunciada
e amanhã ainda consiga
colocar um pé dentro do sapato.
É com uma teia de aranha
que cubro os olhos do silêncio
para que a morte não perturbe
a última palavra pronunciada
e amanhã ainda consiga
colocar um pé dentro do sapato.
quinta-feira, outubro 02, 2003
mais um Não,*
a única diferença é que este não já foi sim, um dia. Terá sido mesmo? É tempo de realidades.
a única diferença é que este não já foi sim, um dia. Terá sido mesmo? É tempo de realidades.
uma mãozinha*
se lhes for possível: que obras literárias me recomendam que, historicamente, abarquem a 2.ª metade do séc. XIX e os inícios do séc. XX e que retratem um ou alguns destes temas: a sociedade industrial, o colonialismo/ imperialismo, a luta de classes, os movimentos artísticos de vanguarda, a questão feminina... ? Agradece-se nem que seja uma 'unhinha'.
se lhes for possível: que obras literárias me recomendam que, historicamente, abarquem a 2.ª metade do séc. XIX e os inícios do séc. XX e que retratem um ou alguns destes temas: a sociedade industrial, o colonialismo/ imperialismo, a luta de classes, os movimentos artísticos de vanguarda, a questão feminina... ? Agradece-se nem que seja uma 'unhinha'.
quarta-feira, outubro 01, 2003
erasmus*
a partir de amanhã será nome de saudade. «Ich bin ein Berliner», nada! Volta depressa T., ordem da irmã mais velha!
a partir de amanhã será nome de saudade. «Ich bin ein Berliner», nada! Volta depressa T., ordem da irmã mais velha!
les feuilles mortes*
Oh ! je voudrais tant que tu te souviennes
Des jours heureux où nous étions amis.
En ce temps-là la vie était plus belle,
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle.
Tu vois, je n'ai pas oublié...
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Les souvenirs et les regrets aussi
Et le vent du nord les emporte
Dans la nuit froide de l'oubli.
Tu vois, je n'ai pas oublié
La chanson que tu me chantais.
C'est une chanson qui nous ressemble.
Toi, tu m'aimais et je t'aimais
Et nous vivions tous deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.
Mais la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Les souvenirs et les regrets aussi
Mais mon amour silencieux et fidèle
Sourit toujours et remercie la vie.
Je t'aimais tant, tu étais si jolie.
Comment veux-tu que je t'oublie ?
En ce temps-là, la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.
Tu étais ma plus douce amie
Mais je n'ai que faire des regrets
Et la chanson que tu chantais,
Toujours, toujours je l'entendrai !
Jacques Prévert
[na voz de Edith Piaf, Patricia Kaas, Diana Krall, Ricky Lee Jones, Nat King Cole, ...]
p.s. - Vai à Janela e diz o que sabes das folhas de Outono.
Oh ! je voudrais tant que tu te souviennes
Des jours heureux où nous étions amis.
En ce temps-là la vie était plus belle,
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle.
Tu vois, je n'ai pas oublié...
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Les souvenirs et les regrets aussi
Et le vent du nord les emporte
Dans la nuit froide de l'oubli.
Tu vois, je n'ai pas oublié
La chanson que tu me chantais.
C'est une chanson qui nous ressemble.
Toi, tu m'aimais et je t'aimais
Et nous vivions tous deux ensemble,
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais.
Mais la vie sépare ceux qui s'aiment,
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,
Les souvenirs et les regrets aussi
Mais mon amour silencieux et fidèle
Sourit toujours et remercie la vie.
Je t'aimais tant, tu étais si jolie.
Comment veux-tu que je t'oublie ?
En ce temps-là, la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui.
Tu étais ma plus douce amie
Mais je n'ai que faire des regrets
Et la chanson que tu chantais,
Toujours, toujours je l'entendrai !
Jacques Prévert
[na voz de Edith Piaf, Patricia Kaas, Diana Krall, Ricky Lee Jones, Nat King Cole, ...]
p.s. - Vai à Janela e diz o que sabes das folhas de Outono.
"invitation to the blues"*
conheces bem este sossego
de céu cinzento— humidade onde era seco
lama onde era pó—
este sossego de estalar a chuva
nos vidros do fim da tarde
esperas no carro
com a mesma solicitude de que
fazes todas as esperas
— quando sabes da impossibilidade
da vinda– dizes-te embrutecida—
o amor mais do que a vida faz de nós pedras
(forças a mesma música pela
terceira vez)
e por isso houve alturas em
que desejaste parasse
o tempo e se repetissem os beijos
pela imobilidade dos relógios fora
eram outros tempos
(cinco seis sete vezes
a mesma música até não fazer
sentido até deixar de doer)
perdes o rasto que aqui te trouxe
não saberias explicar o estar
aqui se to pedisse
como se de volta ao balbúcio
(ao menos então eram simples os afectos)
apenas que ainda te doem os beijos
conheces bem este sossego
de céu cinzento— humidade onde era seco
lama onde era pó—
este sossego de estalar a chuva
nos vidros do fim da tarde
esperas no carro
com a mesma solicitude de que
fazes todas as esperas
— quando sabes da impossibilidade
da vinda– dizes-te embrutecida—
o amor mais do que a vida faz de nós pedras
(forças a mesma música pela
terceira vez)
e por isso houve alturas em
que desejaste parasse
o tempo e se repetissem os beijos
pela imobilidade dos relógios fora
eram outros tempos
(cinco seis sete vezes
a mesma música até não fazer
sentido até deixar de doer)
perdes o rasto que aqui te trouxe
não saberias explicar o estar
aqui se to pedisse
como se de volta ao balbúcio
(ao menos então eram simples os afectos)
apenas que ainda te doem os beijos
terça-feira, setembro 30, 2003
dualidades mínimas #27
creio profundamente nas palavras
que ficam por dizer, só assim construo
babilónias, lugares suspensos e duais
creio profundamente nas palavras
que ficam por dizer, só assim construo
babilónias, lugares suspensos e duais
segunda-feira, setembro 29, 2003
longe de mim mesma ou a fingir que sim #3*
Não acrescento alegorias aos movimentos das árvores.
Não prolongo as varandas para além das buganvílias.
Não abro gomos de chuva se olho as nuvens, subitamente paradas sobre o vento.
Não sei inquietar as cores, esticar os braços, colher presságios,
como se as cores fossem as sementes do mundo,
como se os braços fossem velas no alto mar,
como se os presságios servissem para fazer um arranjo no centro da alma porque haverá um dia.
Não acrescento pulsação ao silêncio e os poemas morrem
como se nunca tivessem feito amor.
Não acrescento alegorias aos movimentos das árvores.
Não prolongo as varandas para além das buganvílias.
Não abro gomos de chuva se olho as nuvens, subitamente paradas sobre o vento.
Não sei inquietar as cores, esticar os braços, colher presságios,
como se as cores fossem as sementes do mundo,
como se os braços fossem velas no alto mar,
como se os presságios servissem para fazer um arranjo no centro da alma porque haverá um dia.
Não acrescento pulsação ao silêncio e os poemas morrem
como se nunca tivessem feito amor.
longe de mim mesma ou a fingir que sim #2*
Sobre a tristeza, poemas de Rui Almeida
(a quem agradeço este privilégio )
Rouba-me os tendões para fazer harpas
e guarda a cisterna como uma porta.
................
Por vezes rendo-me ao betão armado,
às lojas dos centros comerciais,
ao brilho de certos anéis.
E entro fácil atrás de vozes
de anjos demasiado pequenos
vindos de muitos lados.
................
AGORA, ESTAR, AINDA
Escrever é íntimo demais
para não ser acto de amor.
É as letras a estarem juntas por
sabermos que é assim que as queremos. E
amamos e nos deixamos amar
pelas sílabas de um rosto que é outra
coisa, não papel ou tinta ou mão que escreve.
Será olhos e nariz e boca e
beijos e respiração e olhares
ditos devagar depois de terem sido.
................
Não é só do pão que preciso, é
da água
e da morte, do caminho entre as
canas até à figueira. Preciso
dos olhos dolentes de um cão, das terras
cheias de erva e das casas em ruínas.
Preciso do cheiro do amor na terra.
................
Os poetas são seres de papel
como as paredes das casas na China
................
Delicadamente,
pouso os meus pés sobre as ilhas
e sobrevoo a tristeza
apertado pela luz como diante do céu
______________
Que este seja apenas o mote para que o Rui
deixe mais poesia sua distribuída na rua.
Sobre a tristeza, poemas de Rui Almeida
(a quem agradeço este privilégio )
Rouba-me os tendões para fazer harpas
e guarda a cisterna como uma porta.
................
Por vezes rendo-me ao betão armado,
às lojas dos centros comerciais,
ao brilho de certos anéis.
E entro fácil atrás de vozes
de anjos demasiado pequenos
vindos de muitos lados.
................
AGORA, ESTAR, AINDA
Escrever é íntimo demais
para não ser acto de amor.
É as letras a estarem juntas por
sabermos que é assim que as queremos. E
amamos e nos deixamos amar
pelas sílabas de um rosto que é outra
coisa, não papel ou tinta ou mão que escreve.
Será olhos e nariz e boca e
beijos e respiração e olhares
ditos devagar depois de terem sido.
................
Não é só do pão que preciso, é
da água
e da morte, do caminho entre as
canas até à figueira. Preciso
dos olhos dolentes de um cão, das terras
cheias de erva e das casas em ruínas.
Preciso do cheiro do amor na terra.
................
Os poetas são seres de papel
como as paredes das casas na China
................
Delicadamente,
pouso os meus pés sobre as ilhas
e sobrevoo a tristeza
apertado pela luz como diante do céu
______________
Que este seja apenas o mote para que o Rui
deixe mais poesia sua distribuída na rua.
longe de mim mesma ou a fingir que sim #1*
POEMA OITO, de Paulinho Assunção
1. Torto por linhas tortas foi o modo que encontrei para exercer em mim as palavras em condição de viventes
2. Em épocas de primeiros êxtases, costumava rastrear delas as pegadas, os rastros, as manchas, como se fossem gentes em êxodo
3. Sonhei recados de umas para as outras nas vísceras do não-dito nem escrito
4. Sonhei bilhetes no carvão, no fogo e nas cinzas, naquilo que restou das algaravias
5. Imaginei tratados filosóficos em ossos e fósseis de vocábulos
6. Vi pedaços do que eu fantasiava um dia escrever nas sementes deixadas na tumba dos faraós
7. E veio o dia em que olhei o mundo e o mundo era feito de letras e alfabetos
8. Foi então que fantasiei uma caixa de escrever, uma caixa de escrever com gavetas lacradas que descobri não terem chaves nem manual de instruções para abri-las
9. Torto por linhas tortas descobri que investigar palavras é diferente do ofício do anatomista que cinde um cadáver
10. Torto por linhas tortas soube que o matiz nelas existente é diferente do que há de matiz por exemplo no ventre de uma pedra
11. O que nelas há de peso e volume é diferente do peso e do volume que se apreende da mensuração de um tijolo
12. Nem adianta jogá-las em um poço a fim de que produzam os sons ou os ecos de uma moeda
13. Nem adianta querer delas o ritmo que vem da baqueta sobre o tarol ou sobre o bumbo, esses ritmos de fanfarra
14. Torto por linhas tortas descobri o quanto de falácia há no ato de encerrar palavras dentro de uma garrafa
15. Torto por linhas tortas restringi meus êxtases a um sol todo estilhaços vazado por uma janela e pintor de ideogramas nas paredes
16. Torto por linhas tortas fui até Rimbaud, mas tive de levar pincel e tinta a fim de dar cor à cor que ele disse ter visto em suas vogais
17. Tocar as palavras do modo como se toca uma coisa foi o maior dos meus enganos
18. Torto por linhas tortas vi que nem a palavra coisa pode ser tocada à maneira dos corpos
19. A pedra e a mão, sim, formam uma parelha em estado de núpcias e se tocam à maneira de amantes
20. Também parelhas núbeis são a mão e o graveto, a mão e o estilete, a mão e o cinzel, a mão e a goiva, a mão e o cálamo, a mão e a pena de pato, a mão e o pincel, a mão e o lápis
21. Falácia é dizer que a tinta contém fetos de letras e de palavras, pois a tinta é um mero aquém à espera, quando muito um dos murmúrios da cópula futura
22. Palavras podem ser depositadas sobre paredes mas nem por isso terão a consistência dos ovos de uma vespa
23. Palavras podem ser riscadas na areia mas nem por isso o boi vem lambê-las ou o lagarto engoli-las
24. Palavras no granito dissolvem-se na coisa-lápide ou na coisa-estátua, nada mais
25. Falácia é flagrar milagres de palavras em tecido, couro, pergaminho ou papel nos quais estejam incrustadas
26. Falácia é dividir as palavras entre vazias e cheias, entre substantivas e adjetivas
27. Falácia é dividi-las entre escuras e iluminadas
28. Torto por linhas tortas vim a descobrir as similitudes de umas com todas, de todas com nenhuma
29. Torto por linhas tortas descobri ser falácia palavras com chips ou circuitos de néon em suas entranhas
30. Não há estado de coisa nas palavras em escrita cuneiforme, há, sim, estado de coisa na substância barrenta dos tijolinhos de escrever
31. Coisa é o papel, coisa é o caderno, coisa é o livro, coisa é a tela do computador
32. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras não são da ordem da matéria, mas da ordem das povoações
33. E talvez quem saiba delas sejam os santos desmobilizados e sem igreja, os santos expulsos da ordem das santidades
34. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras são também da ordem das miragens
35. Reduzi assim meus êxtases à contemplação da mímica de luz e sombra que há no território das palavras
36. Por exemplo, a mímica da doçura, quando é de favo que elas se mimetizam
37. Por exemplo, a mímica do calor, quando é com fogo que elas nos ilusionam
38. Sob luz de vela, dentro de um claustro, um monge escreve a sua própria hipnose
39. No escritório, com a escrivaninha frente à janela, ou na praça, com o caderno sobre os joelhos, um ilusionista erige no ar palavras em dissipações
40. Num café de Paris, o escrevente sonâmbulo constrói hieróglifos mais leves do que o ar
41. Foi torto, por linhas tortas, que outras águas eu percebi na corrente que subjaz o rio das palavras
42. Coisa é o som que faz um homem na máquina de escrever, coisa é a cadeira anatômica diante do computador
43. Coisa é a cidade de Alexandria, coisa é a biblioteca de Ptolomeu
44. Num mosteiro do fim do mundo, o primeiro e o último livro se enlaçarão com seus braços ou tentáculos de alfa e ômega
45. Todos os dias um falso Gutenberg sonha palavras de gesso encarceradas na página de um livro
46. Torto por linhas tortas descobri ser o Diabo um deslegente tanto quanto Deus é o seu deslido
47. Só torto por linhas tortas pude acompanhar o fio de Ariadne por entre as estantes da biblioteca de Borges
48. Falácia é dividir as palavras entre as ardentes e as frias
49. Torto por linhas tortas descobri que as palavras são da ordem dos fios que ligam um lado e outro do abismo
50. Meu êxtase é ter hoje com elas o convívio das gentes serenadas, das gentes desafligidas de bando
(Texto integral do livro "Outras Águas", "Edições 2 Luas", 2000, Belo Horizonte. Os livros da Edições 2 Luas são produzidos artesanalmente por Paulinho Assunção desde 1998)
Muito mais aqui, aqui e aqui.
POEMA OITO, de Paulinho Assunção
1. Torto por linhas tortas foi o modo que encontrei para exercer em mim as palavras em condição de viventes
2. Em épocas de primeiros êxtases, costumava rastrear delas as pegadas, os rastros, as manchas, como se fossem gentes em êxodo
3. Sonhei recados de umas para as outras nas vísceras do não-dito nem escrito
4. Sonhei bilhetes no carvão, no fogo e nas cinzas, naquilo que restou das algaravias
5. Imaginei tratados filosóficos em ossos e fósseis de vocábulos
6. Vi pedaços do que eu fantasiava um dia escrever nas sementes deixadas na tumba dos faraós
7. E veio o dia em que olhei o mundo e o mundo era feito de letras e alfabetos
8. Foi então que fantasiei uma caixa de escrever, uma caixa de escrever com gavetas lacradas que descobri não terem chaves nem manual de instruções para abri-las
9. Torto por linhas tortas descobri que investigar palavras é diferente do ofício do anatomista que cinde um cadáver
10. Torto por linhas tortas soube que o matiz nelas existente é diferente do que há de matiz por exemplo no ventre de uma pedra
11. O que nelas há de peso e volume é diferente do peso e do volume que se apreende da mensuração de um tijolo
12. Nem adianta jogá-las em um poço a fim de que produzam os sons ou os ecos de uma moeda
13. Nem adianta querer delas o ritmo que vem da baqueta sobre o tarol ou sobre o bumbo, esses ritmos de fanfarra
14. Torto por linhas tortas descobri o quanto de falácia há no ato de encerrar palavras dentro de uma garrafa
15. Torto por linhas tortas restringi meus êxtases a um sol todo estilhaços vazado por uma janela e pintor de ideogramas nas paredes
16. Torto por linhas tortas fui até Rimbaud, mas tive de levar pincel e tinta a fim de dar cor à cor que ele disse ter visto em suas vogais
17. Tocar as palavras do modo como se toca uma coisa foi o maior dos meus enganos
18. Torto por linhas tortas vi que nem a palavra coisa pode ser tocada à maneira dos corpos
19. A pedra e a mão, sim, formam uma parelha em estado de núpcias e se tocam à maneira de amantes
20. Também parelhas núbeis são a mão e o graveto, a mão e o estilete, a mão e o cinzel, a mão e a goiva, a mão e o cálamo, a mão e a pena de pato, a mão e o pincel, a mão e o lápis
21. Falácia é dizer que a tinta contém fetos de letras e de palavras, pois a tinta é um mero aquém à espera, quando muito um dos murmúrios da cópula futura
22. Palavras podem ser depositadas sobre paredes mas nem por isso terão a consistência dos ovos de uma vespa
23. Palavras podem ser riscadas na areia mas nem por isso o boi vem lambê-las ou o lagarto engoli-las
24. Palavras no granito dissolvem-se na coisa-lápide ou na coisa-estátua, nada mais
25. Falácia é flagrar milagres de palavras em tecido, couro, pergaminho ou papel nos quais estejam incrustadas
26. Falácia é dividir as palavras entre vazias e cheias, entre substantivas e adjetivas
27. Falácia é dividi-las entre escuras e iluminadas
28. Torto por linhas tortas vim a descobrir as similitudes de umas com todas, de todas com nenhuma
29. Torto por linhas tortas descobri ser falácia palavras com chips ou circuitos de néon em suas entranhas
30. Não há estado de coisa nas palavras em escrita cuneiforme, há, sim, estado de coisa na substância barrenta dos tijolinhos de escrever
31. Coisa é o papel, coisa é o caderno, coisa é o livro, coisa é a tela do computador
32. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras não são da ordem da matéria, mas da ordem das povoações
33. E talvez quem saiba delas sejam os santos desmobilizados e sem igreja, os santos expulsos da ordem das santidades
34. Torto por linhas tortas vim a descobrir que as palavras são também da ordem das miragens
35. Reduzi assim meus êxtases à contemplação da mímica de luz e sombra que há no território das palavras
36. Por exemplo, a mímica da doçura, quando é de favo que elas se mimetizam
37. Por exemplo, a mímica do calor, quando é com fogo que elas nos ilusionam
38. Sob luz de vela, dentro de um claustro, um monge escreve a sua própria hipnose
39. No escritório, com a escrivaninha frente à janela, ou na praça, com o caderno sobre os joelhos, um ilusionista erige no ar palavras em dissipações
40. Num café de Paris, o escrevente sonâmbulo constrói hieróglifos mais leves do que o ar
41. Foi torto, por linhas tortas, que outras águas eu percebi na corrente que subjaz o rio das palavras
42. Coisa é o som que faz um homem na máquina de escrever, coisa é a cadeira anatômica diante do computador
43. Coisa é a cidade de Alexandria, coisa é a biblioteca de Ptolomeu
44. Num mosteiro do fim do mundo, o primeiro e o último livro se enlaçarão com seus braços ou tentáculos de alfa e ômega
45. Todos os dias um falso Gutenberg sonha palavras de gesso encarceradas na página de um livro
46. Torto por linhas tortas descobri ser o Diabo um deslegente tanto quanto Deus é o seu deslido
47. Só torto por linhas tortas pude acompanhar o fio de Ariadne por entre as estantes da biblioteca de Borges
48. Falácia é dividir as palavras entre as ardentes e as frias
49. Torto por linhas tortas descobri que as palavras são da ordem dos fios que ligam um lado e outro do abismo
50. Meu êxtase é ter hoje com elas o convívio das gentes serenadas, das gentes desafligidas de bando
(Texto integral do livro "Outras Águas", "Edições 2 Luas", 2000, Belo Horizonte. Os livros da Edições 2 Luas são produzidos artesanalmente por Paulinho Assunção desde 1998)
Muito mais aqui, aqui e aqui.
dualidades mínimas #26
na respiração ofegante
leia-se cansaço ou fadiga
ou o medo resvalando no pânico
na respiração ofegante
leia-se cansaço ou fadiga
ou o medo resvalando no pânico
domingo, setembro 28, 2003
[...]*
Olho para a prateleira dos livros de poesia e não pronuncio o gesto. Permaneçam em paz.
Nem sequer olho para as minhas mãos: recolho o tempo dos regressos, para que me separe dos pés. Permaneça o silêncio. Bendita sejas tu entre as mulheres.
Olho para a prateleira dos livros de poesia e não pronuncio o gesto. Permaneçam em paz.
Nem sequer olho para as minhas mãos: recolho o tempo dos regressos, para que me separe dos pés. Permaneça o silêncio. Bendita sejas tu entre as mulheres.