quinta-feira, agosto 07, 2003
clAud e claire*
Hoje, por aqui, blogou-se de outra forma. As dualidades estiveram juntas pela primeira vez e ainda foram acompanhadas por uma pequena mancha de sóis negros que irradia luz à sua volta. Coisas da não-blogosfera. Infelizmente, só nos lembrámos de um poema a seis mãos quando eu já estava com um pé no regresso. Em compensação (ou como vingança), desafiei as meninas para que terminassem a tarde na Fnac.
Hoje, por aqui, blogou-se de outra forma. As dualidades estiveram juntas pela primeira vez e ainda foram acompanhadas por uma pequena mancha de sóis negros que irradia luz à sua volta. Coisas da não-blogosfera. Infelizmente, só nos lembrámos de um poema a seis mãos quando eu já estava com um pé no regresso. Em compensação (ou como vingança), desafiei as meninas para que terminassem a tarde na Fnac.
quarta-feira, agosto 06, 2003
maldade*
«É que nesse momento a Maria Antónia amava. E, quando se ama, quando se ama daquela maneira, a maldade (embora não desapareça, como muita gente julga) não se vai assim desperdiçar com terceiras pessoas: toda ela se concentra no próprio amor, no acto e no objecto do amor; e a melhor parte é necessária para se transformar em volúpia - que é já uma formazinha de malvadez.»
David Mourão-Ferreira, Gaivotas em terra, Editorial Presença, 1998
«É que nesse momento a Maria Antónia amava. E, quando se ama, quando se ama daquela maneira, a maldade (embora não desapareça, como muita gente julga) não se vai assim desperdiçar com terceiras pessoas: toda ela se concentra no próprio amor, no acto e no objecto do amor; e a melhor parte é necessária para se transformar em volúpia - que é já uma formazinha de malvadez.»
David Mourão-Ferreira, Gaivotas em terra, Editorial Presença, 1998
terça-feira, agosto 05, 2003
búzio do árctico #1
é puro desenlace a matéria âmbar destas tardes
perdi-te onde o caule das nuvens se parte entre os dedos
e ainda agora me parece inverosímil este céu todo
sobre os ombros
como insustentável é a tua ausência sobre a decisão
de não mais contrariar a ruína há muito anunciada
e se todas as fórmulas com que me concedo a chuva
são possíveis
é para que um pouco de mar lave
esta pedra do meu peito
só assim em cada fim de tarde o desenlace é perfeito
como um círculo, matéria âmbar dos regressos.
....................................................................................
Retomando o fio dos mares, o Búzio do Árctico
regressa ao seu ofício de fazer estremecer o silêncio. Aqui e aqui.
é puro desenlace a matéria âmbar destas tardes
perdi-te onde o caule das nuvens se parte entre os dedos
e ainda agora me parece inverosímil este céu todo
sobre os ombros
como insustentável é a tua ausência sobre a decisão
de não mais contrariar a ruína há muito anunciada
e se todas as fórmulas com que me concedo a chuva
são possíveis
é para que um pouco de mar lave
esta pedra do meu peito
só assim em cada fim de tarde o desenlace é perfeito
como um círculo, matéria âmbar dos regressos.
....................................................................................
Retomando o fio dos mares, o Búzio do Árctico
regressa ao seu ofício de fazer estremecer o silêncio. Aqui e aqui.
segunda-feira, agosto 04, 2003
imagias #3
Sunrise with Sea Monsters,
Turner, John Mallord William (1775-1851)
Não interessa em que manhã o monstro
despontou sobre o mar quebrando os azuis
como se esse fosse o desígnio mais fácil do sol:
creio que os monstros têm olhos tristes
e precedem as lágrimas que inflamam
de naufrágios a matéria invisível dos poemas.
(alguém, eventualmente, deixou de amar
e uma rígida explosão aconteceu
sobre todas as coisas indispensáveis)
Sunrise with Sea Monsters,
Turner, John Mallord William (1775-1851)
Não interessa em que manhã o monstro
despontou sobre o mar quebrando os azuis
como se esse fosse o desígnio mais fácil do sol:
creio que os monstros têm olhos tristes
e precedem as lágrimas que inflamam
de naufrágios a matéria invisível dos poemas.
(alguém, eventualmente, deixou de amar
e uma rígida explosão aconteceu
sobre todas as coisas indispensáveis)
dualidades mínimas #15
Queria segurar o caule do silêncio
entre as mãos para que a tua morte
demorasse para sempre.
Queria segurar o caule do silêncio
entre as mãos para que a tua morte
demorasse para sempre.
domingo, agosto 03, 2003
aviso: post muito longo*
tendo a evitar textos longos no monitor, os olhos ressentem-se muito. mas isto. trata-se de um dos meus pedaços favoritos de literatura, não o consegui cortar. assim sendo, cá vai, de um fôlego só.
Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora – quase sem reparar – cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, davam-lhe o ar de uma criatura que não pertencia a este mundo.
Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada – o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo – a do silêncio – a do sonho.
Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse á grande nódoa de humidade da parede.
Sei que chorou, mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios – a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?
Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas mais belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, num silêncio, nas coisas suspensas na luz – nos botões quase a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.
O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas...
É que há, entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.
Mas há, entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. – Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!
Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e te pertenço.
Raul Brandão, Húmus, Porto Editora, 1991
tendo a evitar textos longos no monitor, os olhos ressentem-se muito. mas isto. trata-se de um dos meus pedaços favoritos de literatura, não o consegui cortar. assim sendo, cá vai, de um fôlego só.
Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora – quase sem reparar – cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, davam-lhe o ar de uma criatura que não pertencia a este mundo.
Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada – o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo – a do silêncio – a do sonho.
Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse á grande nódoa de humidade da parede.
Sei que chorou, mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios – a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?
Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas mais belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, num silêncio, nas coisas suspensas na luz – nos botões quase a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.
O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas...
É que há, entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.
Mas há, entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. – Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!
Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e te pertenço.
Raul Brandão, Húmus, Porto Editora, 1991
actualizando,*
enquanto o calor ainda é suportável e acabo a salada de frutas. Novos links ali ao lado:
A Espuma dos Dias
A Natureza do Mal
aqui não há poeta
Homem a Dias
Lugar da incerteza
Não esperem nada de mim
No Arame
Palavras & Letras
rain song
Ruialme
enquanto o calor ainda é suportável e acabo a salada de frutas. Novos links ali ao lado:
A Espuma dos Dias
A Natureza do Mal
aqui não há poeta
Homem a Dias
Lugar da incerteza
Não esperem nada de mim
No Arame
Palavras & Letras
rain song
Ruialme
férias*
a meio da tarde a luz falhou para já só voltar ao início da noite. por essa altura, senti o cheiro a pastos queimados. sai à rua e um calor ainda mais seco e um nevoeiro, ou como que um nevoeiro, e pequeníssimas cinzas colando-se à pele, trazidas pelo vento que vinha de lá, de onde ardiam as árvores. aqui do bairro, como é alto, podia ver-se o ponto exacto onde começava a nuvem de fumo negro que se substituiu ao meu céu, tal como se via, certamente a toque de vento, o levantar de uma ou outra labareda acima das árvores. o sol ainda alto, mas já vermelho, entre um e outro véu de beata em luto de missa de sétimo dia. depois, presumo que o vento começou a soprar de cá para lá – ou fui eu quem soprou – e o cheiro menos intenso e as cinzas todas caindo no chão. limpar os parapeitos das janelas salpicados de preto.
há pouco, fui fechar a janela da cozinha e de novo o cheiro.
isto tudo, por um fogo que só avisto.
.........................
entretanto, depois de escrever isto, andei a passear por aí. parece que toda a gente tem um fogo mesmo ali ao lado. parece também que, o mais das vezes, está controlado, mas, sabemo-lo bem, se de repente um pé de vento...
a meio da tarde a luz falhou para já só voltar ao início da noite. por essa altura, senti o cheiro a pastos queimados. sai à rua e um calor ainda mais seco e um nevoeiro, ou como que um nevoeiro, e pequeníssimas cinzas colando-se à pele, trazidas pelo vento que vinha de lá, de onde ardiam as árvores. aqui do bairro, como é alto, podia ver-se o ponto exacto onde começava a nuvem de fumo negro que se substituiu ao meu céu, tal como se via, certamente a toque de vento, o levantar de uma ou outra labareda acima das árvores. o sol ainda alto, mas já vermelho, entre um e outro véu de beata em luto de missa de sétimo dia. depois, presumo que o vento começou a soprar de cá para lá – ou fui eu quem soprou – e o cheiro menos intenso e as cinzas todas caindo no chão. limpar os parapeitos das janelas salpicados de preto.
há pouco, fui fechar a janela da cozinha e de novo o cheiro.
isto tudo, por um fogo que só avisto.
.........................
entretanto, depois de escrever isto, andei a passear por aí. parece que toda a gente tem um fogo mesmo ali ao lado. parece também que, o mais das vezes, está controlado, mas, sabemo-lo bem, se de repente um pé de vento...
sexta-feira, agosto 01, 2003
no feminino #7*
Carta
Quero que saibas que
não acredito na perenidade das Primaveras
na eterna permanência do aroma do jasmim
no irresistível encanto amarelo do girassol
no mais precioso tesouro guardado na intimidade das prímulas
na certeza completa do arco-íris
no fascínio que o mar tem por nós quando a luz cai oblíqua,
quero que saibas que não acredito em nada disto
e em histórias de amor com finais felizes muito menos,
que se continuo a lembrar as histórias que li em criança
e a mim mesma me invento outras
é apenas porque ainda não consegui abdicar do sonho,
que se te invento um palácio e portões dourados para o teu mundo
é apenas para poder sonhar com um abrigo como duas mãos
quando já não souber que fazer sob a trovoada,
e que se assim te escrevo
escudando as palavras na fragilidade óbvia das metáforas
é porque ainda confio
e quero que saibas que quero acreditar.
Rute Mota, algures por aí e aqui
Carta
Quero que saibas que
não acredito na perenidade das Primaveras
na eterna permanência do aroma do jasmim
no irresistível encanto amarelo do girassol
no mais precioso tesouro guardado na intimidade das prímulas
na certeza completa do arco-íris
no fascínio que o mar tem por nós quando a luz cai oblíqua,
quero que saibas que não acredito em nada disto
e em histórias de amor com finais felizes muito menos,
que se continuo a lembrar as histórias que li em criança
e a mim mesma me invento outras
é apenas porque ainda não consegui abdicar do sonho,
que se te invento um palácio e portões dourados para o teu mundo
é apenas para poder sonhar com um abrigo como duas mãos
quando já não souber que fazer sob a trovoada,
e que se assim te escrevo
escudando as palavras na fragilidade óbvia das metáforas
é porque ainda confio
e quero que saibas que quero acreditar.
Rute Mota, algures por aí e aqui
no feminino #6*
perigeu
da linha indivisível dos dias
teço a minha respiração
como se perscrutasse os interstícios do desassossego
onde arrumo o corpo
noite após noite
como se dormisse
exaurida das lágrimas hoje
o meu sal é todo pele
e acordo numa sublime palavra azul
de contornos áureos
como o outono que quebra a espiga
já madura
no vento manso
do corpo
um latejar de asas
um restaurar da fome
pelos bagos que roubo da boca das manhãs
rente ao júbilo das promessas
recuperadas
e hoje
com o sabor a equinócio de todos os dias
que renascem
como devem
sou astro engolindo a escuridão
todos os brilhos são sóis que me devolvem
ao rumor das rosas.
R. C. (insensatez, claire_lunar), algures por aí
perigeu
da linha indivisível dos dias
teço a minha respiração
como se perscrutasse os interstícios do desassossego
onde arrumo o corpo
noite após noite
como se dormisse
exaurida das lágrimas hoje
o meu sal é todo pele
e acordo numa sublime palavra azul
de contornos áureos
como o outono que quebra a espiga
já madura
no vento manso
do corpo
um latejar de asas
um restaurar da fome
pelos bagos que roubo da boca das manhãs
rente ao júbilo das promessas
recuperadas
e hoje
com o sabor a equinócio de todos os dias
que renascem
como devem
sou astro engolindo a escuridão
todos os brilhos são sóis que me devolvem
ao rumor das rosas.
R. C. (insensatez, claire_lunar), algures por aí
no feminino #5*
.|<*>|.
ficam as impressões de lábios
dilacerando a pele
mais viva
ficam as fúrias desmedidas
misturadas de raivoso desejo
fica a marca de dedos
cravados numa superfície
obscena
e fica a nódoa descolorida de qualquer
coisa entornada por descuido
ficam os prédios velhos
por mais um século de
escolhos
e ficam mulheres de rugas
e de negro na cal
é assim-- em 'quedâncias'--
que te amo--
-- em suspeitas de permanência
e de intemporalidade escrita
a navalha num carvalho de
duzentos anos senão para sempre
pelo menos para já
Cláudia Caetano (clAud), algures por aí
.|<*>|.
ficam as impressões de lábios
dilacerando a pele
mais viva
ficam as fúrias desmedidas
misturadas de raivoso desejo
fica a marca de dedos
cravados numa superfície
obscena
e fica a nódoa descolorida de qualquer
coisa entornada por descuido
ficam os prédios velhos
por mais um século de
escolhos
e ficam mulheres de rugas
e de negro na cal
é assim-- em 'quedâncias'--
que te amo--
-- em suspeitas de permanência
e de intemporalidade escrita
a navalha num carvalho de
duzentos anos senão para sempre
pelo menos para já
Cláudia Caetano (clAud), algures por aí
no feminino #4*
5 poemas para a noite invariável
[...]
II
Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente
trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas
Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua
Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993
5 poemas para a noite invariável
[...]
II
Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente
trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas
Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua
Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993
no feminino #3*
Aliterando silêncios: composições
Para o Paulo Eduardo
Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento
Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa
Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras
Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira
Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paiagem
Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
- como em sereno
palco
Ana Luísa Amaral, Imagias, Gótica, 2002
Aliterando silêncios: composições
Para o Paulo Eduardo
Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento
Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa
Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras
Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira
Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paiagem
Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
- como em sereno
palco
Ana Luísa Amaral, Imagias, Gótica, 2002
no feminino #2*
Regresso
Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
os pontos
um por um:
o sol
os braços
a boca
o sabor
ou os meus ombros
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
Retorno para mim
e em mim toda
desencontro já o meu regresso
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim, Gótica, 2001
Regresso
Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
os pontos
um por um:
o sol
os braços
a boca
o sabor
ou os meus ombros
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
Retorno para mim
e em mim toda
desencontro já o meu regresso
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim, Gótica, 2001
no feminino #1*
A noite
À altura de todas as estrelas
coloco as mãos para tocar o vento.
A lua é um fascínio que deixa atónito
o meu corpo, e lhe dá um cheiro
de fêmea fecundada; um fogo posto
a deixar um luar, pleno, detido nos meus olhos.
Passeio-me, longamente,
pelo lado mais insensato das palavras
e digo o nome do último pássaro nocturno,
como se nele repetisse um primeiro adeus,
tão súplice, tão magoado.
Um tango exausto sobe-me pelas pernas.
Há, na minha boca, uma rua silenciosa,
por onde se chega à fragilidade dos lábios.
Graça Pires, Ortografia do Olhar, Editorial Éter, 1996
A noite
À altura de todas as estrelas
coloco as mãos para tocar o vento.
A lua é um fascínio que deixa atónito
o meu corpo, e lhe dá um cheiro
de fêmea fecundada; um fogo posto
a deixar um luar, pleno, detido nos meus olhos.
Passeio-me, longamente,
pelo lado mais insensato das palavras
e digo o nome do último pássaro nocturno,
como se nele repetisse um primeiro adeus,
tão súplice, tão magoado.
Um tango exausto sobe-me pelas pernas.
Há, na minha boca, uma rua silenciosa,
por onde se chega à fragilidade dos lábios.
Graça Pires, Ortografia do Olhar, Editorial Éter, 1996